Sossego em lugar algum. Por Marli Gonçalves
Sossego em lugar algum
Marli Gonçalves
Ninguém mais tem sossego, esse bem tão simples e valioso. Ninguém, por melhor, mais bonito, rico, culto, etcetera etcetera que seja. Não há mais local seguro. Não há idade, cor, sexo, transsexo, nacionalidade ou religião a salvo. Nem quem vive de tirar o sossego dos outros está a salvo. Que mundo é esse onde chegamos?
No bar, no restaurante, no aeroporto, no estádio, na escola, na casa noturna, as gargalhadas e boas conversas com amigos, o paladar da degustação de um jantar e a alegria podem ser interrompidos em segundos por um grupo de malucos armados, alguns vestidos com bombas e com vale-transporte “boom” para o paraíso que imaginam alcançar com sua dedicação e fanatismo. Os senhores da guerra e das armas devem estar orgulhosos do que conseguiram: inquietar um planeta.
Pois falo do terror, e falo também do outro terror – esse que está bem aqui, bem nosso, que nem ideal tem, mais comum, que desce o morro, não para morrer, mas para matar por uns trocados, um relógio, um celular. Que mata por prazer. Que vaga pelas ruas à cata de seus alvos, entre os descuidados, entre os distraídos, ou que não deviam estar ali naquela hora, naquele momento. Bestas, cada vez mais jovens, cada vez mais numerosos, querem tomar na mão grande o que nunca pretenderam conquistar pelo bem. Homens e mulheres que sob algum comando geral, estranhamente sempre muito pouco identificado, atacam. Eles não têm futuro e acham que ninguém pode ter. Qualquer movimento brusco, qualquer tentativa de se defender pode valer uma vida, tirada ainda mais rápido e sem piedade.
Vida que vale nada, pouco; aliás é o produto que vem sendo mais desvalorizado na bolsa da existência. Tempos violentos esses, sem poesia nem para atos extremos – antes, há uma ou duas, três décadas, ainda havia restos de um certo romantismo e elegância, uma certa aventura, para os que buscavam seus ideais patrióticos ou políticos, em guerrilhas e roubos arrojados. Ladrões que mereceram admiração pelo estilo que executavam seus crimes. Ou até os que amavam tanto que o ciúme corroeu a alma ao ponto de quererem matar para continuar sendo únicos, paixões cheias de literatura.
Hoje não são mais histórias bonitas, daquelas que dá vontade de escrever sobre elas, saber o que as motivou, como tantas vezes na vida de repórter encontrei. Agora são apenas notícias cruéis, curtas, sem emoção, que se sucedem e preenchem com estardalhaço os programas policiais das tardes na tevê, narradas por apresentadores que dão ênfase automaticamente a algumas palavras ou frases que repetem para deter nossa atenção, com vinhetas repletas de sangue estampadas no rodapé. Truque.
Não há sossego em lugar algum. Isso esgota nossos nervos, e andamos olhando para os lados, desconfiados de tudo e todos, pouco solidários, cada vez mais isolados e em rede virtual onde também ali é preciso atenção, não dá para relaxar. Podem estar do outro lado, fingindo, mentindo, enganando, querendo roubar você. E você pode cair no truque, no golpe, mesmo que esteja em casa, quietinho, de pijama e chinelinho. Não abra. Não acredite.
A polícia apavora – os tiros podem sair pela culatra, perdidos, e alguns deles, dos próprios policiais que podem estar nos dois lados da questão ou defendendo sem eira nem beira umas leis próprias de mundo cão, que autorizam forjar provas plantando armas e drogas, incriminar inocentes.
Cidades pacatas do interior, onde decididamente não havia disso, agora sofrem com a reprodução do que de pior viaja no tempo, nos ventos das grandes capitais. Bancos explodem. Cracolândias tomam suas lindas praças e se expandem por debaixo das soleiras devastando seus garotos, puxados pelos braços do tédio e das informações que chegaram alimentando o bichinho do consumo, do se dar bem.
É visível que está difícil e perigoso viver. Mais ainda enfrentando o maior de todos, o desassossego da natureza, indomável em seus quatro elementos, terra, ar, fogo, água, que também mandam recados e podem se rebelar de vez – e caso isso seja com grande força pode devastar e tornar tudo um grande descampado, um nada, finalmente com uma quietude. Um sossego. Mas um que, creio, não é o que desejaríamos.
Marli Gonçalves, jornalista – – O que vejo e o que me preocupa.
SP, 2016
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