Invenções brasileiras. Por Rubens Figueiredo
Invenções brasileiras
Por Rubens Figueiredo
…A complexidade desse arranjo estapafúrdio é potencializada pelo “turbomultipartidarismo”, ou seja, a deletéria combinação de excesso de agremiações, fragmentação partidária e fragilidade de liderança.
O Brasil é pródigo em invenções políticas. São da nossa lavra o “presidencialismo de coalizão”, o “turbomultipartidarismo”, o “Estado saco sem fundo”, o esquerdismo 3B (bizarro-belicoso- birrento) e a “pauta bomba”.
O presidencialismo de coalizão – melhor seria “presidencialismo de cooptação” – é um sistema no qual o presidente da República é obrigado a trocar cargos no Executivo por votos no Legislativo. Como temos mais de trinta partidos com representação no Congresso e mais de 22 mil cargos de livre provimento na máquina pública, além de dezenas de milhares de contratos, dá para imaginar a dificuldade da empreitada. Mais do que um líder visionário e políticos oniscientes, levar a bom termo uma divisão que agrade a todos é tarefa para Prêmio Nobel em Estatística em jornada altamente inspirada.
… Até as carpas do lago Paranoá sabem que o Brasil necessita de reformas. E reformas ocasionam grandes resistências da sociedade, principalmente dos grupos com grande capacidade de vocalização …
Nos Diários da Presidência 1995-1996, monumental obra que descreve os primeiros dois anos do primeiro mandato da gestão Fernando Henrique Cardoso, é possível verificar a gigantesca dificuldade que esse arranjo político acarreta. Várias vezes o presidente da República se declara exausto e reflete sobre a tarefa que lhe parece inexequível de ser, ao mesmo tempo, chefe de Estado, de Governo e condutor de negociações e acordos. É exigir muito de um só ser humano que deva representar o Brasil no cenário internacional, ouvir reclamações de empresários, comunicar-se de forma eficiente com a sociedade e ainda agradar o vereador que incomoda o prefeito aliado da capital do Acre.
A montagem de uma coalizão majoritária que reflita 2/3 dos votos necessários para aprovação de emendas constitucionais exige um esforço hercúleo, que ocorre normalmente em inícios de mandato – quando o “good will” da opinião pública é robusto – ou quando as taxas de aprovação do presidente da República estão nas nuvens.
Aqui, uma dificuldade se instala. Até as carpas do lago Paranoá sabem que o Brasil necessita de reformas. E reformas ocasionam grandes resistências da sociedade, principalmente dos grupos com grande capacidade de vocalização (os “esquerdóides” de plantão). Flexibilizar as leis trabalhistas ou fixar uma idade mínima para aposentadoria nas condições de funcionamento do sistema político brasileiro é quase impossível. Nem FHC, que assumiu o governo respaldado pelo Plano Real, estava determinado a realizar as reformas e foi um presidente reconhecidamente habilidoso nas negociações políticas, avançou muito nesta seara. Modernizar só é possível com a ajuda das forças do atraso e através do comprometimento da popularidade. É uma contradição nos próprios termos.
O “Estado saco sem fundo” é a filosofia que anima setores expressivos do parlamento brasileiro. Trata-se da ideia de que é possível o acúmulo interminável de benefícios para um número cada vez maior de pessoas e no maior espaço de tempo possível (do nascimento à morte é o ideal…), sem a consequente análise da capacidade estatal de suportar as despesas. É a generosidade demagógica e irresponsável a serviço da irracionalidade administrativa, que só pode desembocar na bancarrota.
Tomem-se os exemplos do SUS e da Previdência. O Sistema Único de Saúde preconiza o seguinte: o poder público tem a obrigação de prestar serviço gratuito a todos os brasileiros, durante toda a vida cuidando de todas as doenças. Quando não conseguem o tratamento necessário, os cidadãos mais informados – aquela parcela que menos precisa – recorrem à Justiça, o que obriga Prefeituras a pagar faturas individuais milionárias, comprometendo o atendimento da coletividade. O direito de um vale mais do que o bem estar da maioria. Não pode dar certo.
A Previdência brasileira é uma aberração aritmética. Prevê a aposentadoria aos 55 anos de idade, quando o trabalhador está produtivo, com experiência e vigor para desempenhar de forma muito competente sua função. Tem gente que se aposenta aos 45 anos e viverá mais 40 às custas dos cofres públicos. A conta, simplesmente, não fecha. Em 2015, para cada nove trabalhadores ativos havia um aposentado. Em 2040, serão quatro por um. Mas a simples menção do estudo da possibilidade de aumentar a idade de aposentadoria provoca reações histéricas e birrentas, como se fosse possível pagar, pagar e pagar por toda a eternidade para uma massa cada vez maior de beneficiários sem a contrapartida de receitas.
O grande patrocinador da teoria “Estado saco sem fundo” é o esquerdismo 3B, que se apresenta como defensor do povo, mas funciona como uma locomotiva que puxa o Brasil para o atraso. Tudo que representa racionalidade é rotulado como medidas neoliberais adotadas pela direita ressentida e revanchista. O esquerdismo 3B é raivoso e joga com um imaginário popular, necessariamente fantasioso, segundo o qual o “governo” é responsável pelo problema específico de cada pessoa, família ou comunidade. Neste sentido, buscar empreender, melhorar, criar empregos e progredir por si só é tachado como atitude conservadora e antipopular.
… desse jeito, não há avanço possível. O sistema político brasileiro está travado pelas suas próprias características…
A mais recente invenção brasileira é a “pauta bomba”. Quando o “presidencialismo de coalizão” e o “turbomultipartidarismo” se somam à ideia do “Estado saco sem fundo” inspirado por uma reação à esquerda 3B, surge a dita cuja. A tese é, simplesmente, sensacional: congressistas aprovam medidas demagógicas que provocam um profundo desarranjo fiscal. O objetivo é fazer o governo que se autointitula popular vetar a aplicação de pautas supostamente populares em nome do equilíbrio das contas públicas que o próprio governo, de esquerda, despreza. Resumindo: um espetáculo de ardor cívico.
Fica claro que, desse jeito, não há avanço possível. O sistema político brasileiro está travado pelas suas próprias características. Quando o desempenho institucional depende mais da performance dos titulares das funções do que das competências que a estrutura organiza, algo está muito errado. O sistema político brasileiro é refém de si mesmo e, se fosse operado por irmãs maristas, em pouco tempo os mesmos problemas que temos hoje ressurgiriam. Talvez a reforma com Constituinte exclusiva seja a solução.
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Rubens Figueiredo, cientista político e colaborador do Espaço Democrático – Fundação de Estudos e Formação Política do PSD