Os herdeiros rebeldes
Ivone Zeger
Nem a família que inspirou o musical “A Noviça Rebelde” escapa da briga pela herança
A transmissão de herança tem como objetivo fazer com que o patrimônio construído por gerações passadas possa ser expandido, ou pelo menos administrado e usufruído, pelas gerações seguintes, certo? Em condições ideais seria isso mesmo. Na realidade, porém, as coisas nem sempre são assim. Exemplo emblemático disso é a disputa na qual se envolveram os Von Trapp, que inspiraram a criação do célebre musical “A Noviça Rebelde” – que esteve em cartaz nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Em “As Coisas que Eu Amo”, uma das canções mais famosas do musical e que foi imortalizada na voz de Julie Andrews, Maria, a noviça cantora, descreve o que mais a deixa feliz. Contudo, na versão dos filhos, enteados e demais descendentes de Maria, a lista das “coisas que eu amo” inclui itens bem menos singelos do que “gotas de chuva e bigodes de gato”. Inclui, acima de tudo, a luxuosa estância de esqui fundada pela ex-noviça em Vermont, nos Estados Unidos, e que se tornou o pomo da discórdia entre seus mais de 30 herdeiros.
Praticamente todo mundo já deve ter ouvido falar na história. Na Áustria da primeira metade do século 20, uma jovem noviça vai trabalhar como governanta do viúvo Von Trapp e seus sete filhos. Maria canta e encanta a família, torna-se a nova senhora Von Trapp até que, com a invasão nazista, todos escapam em uma fuga dramática e vivem felizes para sempre… Ou nem tanto. A trama que se desenrola depois que o filme termina é bem menos glamurosa do que as cantorias mostradas nas telas e nos palcos. Os Von Trapp chegam aos Estados Unidos sem dinheiro. Em pouco tempo, Maria fica viúva e, somando-se os filhos que ela teve com o barão, o clã é agora composto por dez crianças e adolescentes. Às custas de muitos sacrifícios, e demonstrando notável espírito empreendedor, Maria funda o resort que passaria a ser a principal fonte de renda da família.
…não há uma fórmula cem por cento segura para evitar o esfacelamento do patrimônio e das relações familiares durante o processo de transmissão de herança. Mas fazer um testamento e planejar a sucessão familiar são medidas que com certeza ajudam…
Como geralmente acontece nesses casos, tudo era mantido razoavelmente sob controle enquanto Maria estava viva. A partir de sua morte, ocorrida em 1987, as diferenças de opinião entre os herdeiros relativas ao controle do resort intensificaram-se, até que seu destino acabou sendo os tribunais de justiça. As brigas que ameaçaram colocar o negócio a pique foram resolvidas depois de anos de trocas de acusações e batalhas judiciais, o que expôs um lado bem mais sombrio – ou talvez simplesmente humano – das adoráveis crianças cantoras de outras épocas.
Provavelmente não há uma fórmula cem por cento segura para evitar o esfacelamento do patrimônio e das relações familiares durante o processo de transmissão de herança. Mas fazer um testamento e planejar a sucessão familiar são medidas que com certeza ajudam. Afinal, família que canta unida nem sempre administra seus bens em harmonia. Os Von Trapp que o digam.
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Ivone Zeger – é advogada especialista em Direito de Família e Sucessão. Membro efetivo da Comissão de Direito de Família da OAB/SP é autora dos livros “Herança: Perguntas e Respostas” e “Família: Perguntas e Respostas” – da Mescla Editorial www.ivonezeger.com.br