O ex-presidente que convocou a Constituinte, legalizou os partidos proscritos, reatou com Cuba e anistiou os que ameaçaram sua integridade física no “picaretaço” do Rio, e foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional, foi ofuscado pelas ações do senador José Sarney.
Artigo publicado originalmente em o globo, blog de jorge moreno, 8 de junho de 2016
O pedido de prisão domiciliar de José Sarney foi recebido com satisfação por grande parcela da sociedade, mas com relativa indignação e perplexidade nos meios políticos e jurídicos do país. Como explicar essa dicotomia? É que existem, na verdade, dois Sarney. O primeiro, o que comandou a transição democrática do país com rara competência e, daí o respeito que goza entre os Três Poderes; o outro, o que, ao longo do tempo em que permaneceu no Senado, depois de ter deixado a presidência da República, acumulou uma série de erros que acabaram comprometendo sua biografia de presidente da República.
Parafraseando, às avessas, o que o embaixador Marcos Azambuja costuma dizer de Jimmy Carter, Sarney, sem exagero, pode ser considerado — politicamente apenas, é bom que se diga — um dos melhores presidentes que já tivemos e um dos piores ex-presidentes que temos.
O declínio político de Sarney começou quando ele, logo após deixar a Presidência, resolveu candidatar-se ao Senado, enfrentando uma batalha humilhante: impedido pelos adversários de ser candidato na sua própria terra, o Maranhão, aceitou transferir o seu domicílio eleitoral para o Amapá.
Na época, Sarney fora desaconselhado a voltar para a vida pública por aqueles que achavam que ele poderia assumir, então, o papel de “pai da pátria” — um político que, pela experiência, seria o moderador informal dos conflitos entre os poderes da República e da própria Casa a que pertenceu praticamente a vida toda, o Congresso Nacional.
Além do natural desejo de continuar na política, pesou na decisão a necessidade de continuar com foro privilegiado para livrar-se de ter que responder às pendências jurídicas do seu governo, em várias comarcas do país.
E assim foi feito. No início, permaneceu discreto, mas influente. No governo Fernando Henrique, assumiu a presidência do Senado e começou a ter atritos com o então presidente da República. Já nos dois últimos mandatos como presidente do Senado, suas gestões foram um desastre, marcadas pelo escândalo dos atos secretos — a ponto de ele próprio, mais tarde, admitir arrependimento pelo fato de ter insistido em ocupar o cargo.
O ex-presidente que convocou a Constituinte, legalizou os partidos proscritos, reatou com Cuba e anistiou os que ameaçaram sua integridade física no “picaretaço” do Rio, e foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional, foi ofuscado pelas ações do senador José Sarney.
Os que viveram intensamente aquele período de reconstrução democrática, sem traumas e revanchismos, graças à habilidade e paciência de um presidente gentil e cioso da liturgia do cargo, e membro desde 1980 da Academia Brasileira de Letras, não devem, no fundo das suas consciências, estar felizes com o pedido de prisão de Sarney. É como se estivessem rasgando uma página bonita da nossa História.