Sê-lo-ia, não fosse a marvada
SÊ-LO-IA, NÃO FOSSE A MARVADA
Por Josué Machado
A língua antiga e o novo governo (não tão novo assim) encontram-se na Brasília em festa (mas não muito).
Muita gente anda criticando Michel Miguel Elias Temer Lulia por causa da fala rebuscada, às vezes artificial, e do discurso um tanto empolado com marcas das aulas de direito de priscas eras, como ele próprio diria.
Outros ironizam o fato de muitos se mostrarem encantados com a “elegância” da frase “correta” de Lulia em comparação com os discursos um tanto toscos de Dilma e Luizinácio: ela com frases às vezes desconexas e desvios improváveis (anacolutos sem rumo); ele, iracundo devorador de plurais e feroz atropelador de concordâncias.
Claro, no entanto, que a forma não é valor essencial, desde que a mensagem seja clara.
…por causa da situação excepcional, em que a forma do discurso do dr. Lulia foi exaltada por uns e denegrida por outros, e, tratando-se das figuras envolvidas, vale a pena apontar pelo menos uma distração formal que inventaram no discurso de posse.
Ruim, mesmo, é governar com o auxílio de quase marginais incompetentes, embora competentes para meter a mão grande nos recursos das estatais, isto é, do povo. E não importa se esses astros são do centro, da esquerda ou da direita, alguns em cana ou candidatos a ela, inclusive do novo governo, nem seria preciso dizer.
Portanto parece tolice irrelevante dar muita importância à forma em declarações e discursos dos governantes, em vez de a dar (epa!) ao conteúdo delas, diria o dr. Óbvio. E é muito feio ficar apontando escorregões formais na fala ou escrita de quem quer que seja.
Mas, por causa da situação excepcional, em que a forma do discurso do dr. Lulia foi exaltada por uns e denegrida por outros, e, tratando-se das figuras envolvidas, vale a pena apontar pelo menos uma distração formal que inventaram no discurso de posse.
Ele pronunciou frase cheia de graça com luminosa mesóclise nessa alocução, como diria ele:
“Quando menos fosse sê-lo-ia pela minha formação democrática e pela minha formação jurídica.”
Alguns jornais, no entanto, reproduziram a frase trocando o “quando” por “como”. Então ficou: “Como menos fosse…”.
Só que a expressão “como menos” criada por esses redatores carece, como também diria Temer, de sentido. Ele disse claramente “QUANDO MENOS fosse”, porque “quando menos” significa “ao menos, pelo menos”.
No entanto, ele teria dito com mais clareza:
“Não fosse por outro motivo, ‘sê-lo-ia’ por minha…”
Enfim, o último que usou a expressão “quando menos” com perfeição foi o luso estilista barroco padre Manuel Bernardes (1644-1710), em “Nova Floresta”, I, p. 112, lembrada pelo Aurélio:
“Dissimular erros no amigo, não é amor, é lisonja; não é prudência, é traição, ou QUANDO MENOS pusilanimidade.”
(Nota: a vírgula depois de “amigo” foi engano do santo homem. A menos que o dactilógrafo tenha sido o mesmo que transcreveu o discurso de Michel Miguel.)
Entre parênteses, e aproveitando a frase do padre santo, o fato é que dissimular erros no amigo Temer, no amigo Luizinácio ou na amiga Dilma é o que têm feito alguns de seus admiradores, inclusive jornalistas, distraídos ou não.
De volta ao texto de Michel Miguel, há uma locução equivalente: “quando mais não fosse”, que também significa “pelo menos”, “no mínimo”. Foi usada por José Américo de Almeida (1887-1980) em “O Boqueirão”, p. 55, como registra Euclides Carneiro da Silva em seu “Dicionário de Locuções da Língua Portuguesa”, edições Bloch, 1975:
“— Vamos à casa da menina da liteira?
— Fazer o quê?
— Pedir desculpas…
— QUANDO MAIS NÃO FOSSE, passava-se o tempo.”
Antiguidades, nada mais, só que a de Lulia/Bernardes é 300 anos mais antiga.
Quanto ao fosforescente “sê-lo-ia”, em que o verbo é atrozmente empalado na mesóclise em extinção no Brasil, posição em que o pronome cruel se introduz no âmago da forma verbal, é formalmente incriticável no caso, a não ser pelo sabor antigo que empresta à fala ou escrita de alguém. (No caso de Lulia, “escripta”.)
De todo modo, é curioso tentar ridicularizar alguém apenas por falar de acordo com a norma culta. Os excessos e o rebuscamento podem ser apenas engraçados. E daí? Pior será o duplo sentido, o uso enviesado da língua para enganar os governados.
A propósito da mesóclise, o articulista da Folha Elio Gaspari lembrou o costume do ex-presidente Jânio Quadros de a usar (epa de novo!) por ter sido professor de geografia na década de 40 e gostar de falas rebuscadas. Também gostava de tomar umas e outras. Tanto que ficou lendária a resposta que teria dado a suposto comentário sobre seu gosto por uísque:
“Bebo-o porque é líquido; fosse sólido, comê-lo-ia!”
Torturante mesóclise, mas provável lenda.
E, fora Jânio, que se saiba, nenhum outro de nossos presidentes — nem um — foi muito chegado à “marvada”, nome que dão à cachaça e a similares mais ou menos refinados. Em geral, menos.
________________________________________________________________________
Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade.