O dia em que crucificaram o Tiradentes ou…
O DIA EM QUE CRUCIFICARAM TIRADENTES
ou
A SEGUNDA MORTE DE TIRADENTES
por Josué Machado
Como pode ser estimulante um passeio isento pela História pontilhada de mártires passados e presentes
Luizinácio tem dito coisas admiráveis nos últimos tempos.
Primeiro, que é o homem mais honesto do país, quiçá do mundo; depois, transformou-se em perigosa jararaca ferida no rabo; em seguida foi um tanto desabrido e disse coisas muito feias sobre a Justiça, o Ministério Público e todos os muitos coxinhas reacionários que o aborrecem — coisas reveladas em conversa gravada pelo juiz Sérgio Moro.
Por fim, no dia 26 último, crucificou Tiradentes em pleno encontro de petistas, que o olhavam com veneração e perceberam que ele estava apenas usando certa liberdade de expressão, porque o que exaltava era o valor do sacrifício, como o sofreram o bom Jesus, Tiradentes e ele próprio, Luizinácio — todos no mesmo patamar, ou melhor, palco, ou melhor, nível, segundo seu entendimento.
“Tiradentes foi crucificado e só depois de 100 anos transformado em herói”, proclamou ele muito vermelho, a voz rouca, pobres cordas vocais.
Poderia ter dito aos correligionários até que Tiradentes havia sido fuzilado ou decapitado que teria obtido o mesmo portentoso efeito oratório. É claro que ele sabe que Tiradentes morreu fuzilado e que os historiadores protorrevolucionários só fizeram onda para transformá-lo em herói 100 anos depois.
O problema é que nem todos sabem que, na linguagem pré e pós-revolucionária, a morte sacrificial de qualquer herói é representada sempre e sempre pela crucificação, embora todos saibam que Tiradentes morreu, isso sim, de gripe H1N1, já muito ativa naqueles tempos sem vacinas.
De modo que muita gente riu de Luizinácio pensando que ele não sabia como havia morrido Tiradentes, e como tinha sido levado no bico pelo outros inconfidentes, entre eles Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto e, claro, Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu da Marília. Só que aquele Dirceu não chegou a ser “O Herói do Povo Brasileiro”, como o atual, preso injustamente por acusações várias, mas, acima de tudo, por seus ideais!
Verdade que aqueles supostos revolucionários de Minas do fim do século 18 estavam mais pra coxinhas do que pra revolucionários autênticos, especialmente o Cláudio Manuel. Porque foram punidos com o desterro e deixaram que Tiradentes fosse crucificado por lutar pela liberdade. Sim, e crucificado em nome deles, fracotes todos! Eram fracotes até na poesia velha que faziam!
Luizinácio nem precisou lembrar que Ganga-Zumba foi traído, como foi também Zumbi – ambos dos Palmares e depois decapitados como Tiradentes, por seus ideais de liberdade.
Não precisou lembrar também Frei Caneca, crucificado em 1825 no Recife por participar de revoltas variadas.
Com o bispo Sardinha foi diferente: também morreu, mas comido pelos índios (no bom sentido). Nada que ver com heroísmo, mas serviria para ilustrar o discurso inflamado (Todo discurso de Luizinácio é “inflamado”.)
Houve outros casos, mas esses bastam por ora.
Enfim, tudo isso e mais alguma coisa Luizinácio teria dito com sua hipnótica fala de língua levemente presa em seu inflamado discurso aos militantes, que agora começam a ser perseguidos como ele, prestes a se tornar mártir, do jeito que a coisa vai.
Sim, teria dito tais verdades se tivesse tido tempo, e se a perda da voz já enrouquecida não o tivesse perturbado.
Mas não faz mal porque ficou tudo subentendido, e os correligionários sabem que nem de longe foi vão o fuzilamento de Tiradentes!
Sabem também que a culpa maior pela morte desse mártir foi de seus companheiros de sedição, que o deixaram assumir sozinho a culpa, sendo ele apenas peão do movimento. Mas o principal culpado, de fato, contaria Luizinácio em sua fala ardente, foi o pai do tetravô do Aócio Neves, o Intendente a soldo de Portugal na Vila Rica daquele tempo.
Nada mais teria sido preciso dizer.
De todo modo, aplausos!
NOTA QUASE DESNECESSÁRIA: Tiradentes foi enforcado e esquartejado em 21 de abril de 1792; Ganga-Zumba, envenado em 1678; Zumbi dos Palmares, apunhalado e decapitado em 1695; o bispo Pero Fernandes Sardinha, com um golpe de clava na cabeça e devorado pelos caetés em 1556; frei Caneca (Joaquim da Silva Rabelo), fuzilado em 1825 porque não houve carrasco que quisesse enforcá-lo, e a morte na forca havia sido sua condenação inicial.
Bem depois de tudo isso, muitas criaturas bem menos revolucionárias do que parecem continuam por aí, flanando numa boa.
Por isso só nos resta revolucionar a História.
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Josué Rodrigues Silva Machado, jornalista, autor de “Manual da Falta de Estilo”, Best Seller, SP, 1995; e “Língua sem Vergonha”, Civilização Brasileira, RJ, 2011, livros de avaliação crítica e análise bem-humorada de textos torturados de jornais, revistas, TV, rádio e publicidade.