A Capa. Coluna Mário Marinho

A CAPA

Sandro Vaia estava ao meu lado naquele começo da noite de 4 de julho de 1982, uma tristemente inesquecível segunda-feira.

Eu era o chefe da equipe de esportes e naquele dia tinha a triste missão de comunicar aos leitores do JT que o Brasil havia sido eliminado da Copa do Mundo de 1982, disputada na Espanha.

A equipe de redação do Jornal da Tarde não era muito grande. Assim, em grandes eventos, era empreendida verdadeira tour-de-force e as editorias forneciam profissionais que iriam reforçar a editora responsável por aquele grande evento.

A Editoria de Esportes, com caderno diário de cobertura da Copa, ganhou reforços.

Lembro-me que Elói Gertel, então pauteiro da Geral foi para o esporte e assumiu as funções que era de Roberto Avallone, a pauta, que por sua vez comandava a equipe na Espanha.

Entre outros reforços, não vou me lembrar de todos, estavam Anélio Barreto e Sandro Vaia.

Aos dois cabia o fechamento propriamente dito da Edição de Esportes.

Eu chegava à redação por volta das 14 horas, recebia a pauta do Elói, entrava em contato com o Avallone na Espanha e discutíamos sobre toda a movimentação do dia: o que foi pautado, o que foi possível fazer, tamanhos de matérias etc.

Sandro e Anélio chegaram por volta das 19 horas.

Fazíamos uma reunião e ali decidíamos espaços das matérias que já eram distribuídas aos copies que chegavam mais ou menos nesse horário.

Naquela época, cada editor criava o layout de suas páginas. No caso da Edição de Esportes, a tarefa pertencia ao Sandro e ao Anélio.

A Seleção Brasileira dava show de bola na Espanha. Encantava o mundo e era chamada pela apaixonada imprensa espanhola de futebol de outro planeta e coisas que tais.

Naquela segunda-feira, caímos frente à Seleção da Itália que teve atuação ridícula na primeira fase da Copa: se classificou sem ganhar um jogo sequer (empate com a Polônia, 0 a 0; empate com o Peru, 1 a 1; empate com Camarões, 1 a 1). Com seu ridículo centroavante Paolo Rossi foi ganhar logo do Brasil: 3 a 2, com três gols de Paolo Rossi.

Foi o único jogo do Brasil a que assisti em casa, bem na hora do almoço daquela segunda-feira.

Cheguei ao jornal por volta das 14 horas preocupado com o que daríamos de manchete na capa da Edição de Esportes.

Dizer que o Brasil havia sido eliminado era chover no molhado, era o óbvio. E o Jornal da Tarde não era dado a obviedades. Ao contrário: era criativo, ousado.

A redação do JT, naquela segunda-feira, vivia um silêncio de velório.

Conversei com o Elói que, assim que terminou o jogo, pautou repórteres para a repercussão da derrota. Entrei em contato com o Avallone e pedi a ele que conversasse com os repórteres: não queria uma cobertura lacrimosa, mas também nada de pau, de desastre com aquela Seleção que tantos elogios recebera.

À noitinha, eu, Sandro e Anélio ainda discutíamos qual seria a manchete quando José Bento Lenzi, chefe da Fotografia, chegou com as telefotos da Espanha.

Fui olhando foto por foto e passando para os dois companheiros. Até que uma me chamou a atenção: tinha um garoto com a camisa da Seleção Brasileira, segurando o choro. Mostrei a foto para o Sandro e o Anélio e disse:

– Aqui a nossa Capa.

O Anélio me confessou depois que não levou muita fé na foto. O Sandro quis saber qual era a ideia.

Peguei um lápis vermelho que usávamos para cortar foto e fiz um corte isolando o garoto. Pedi ao José Bento que ampliasse a foto no maior tamanho possível dentro daquele corte.

Quando a ampliação chegou, houve meio que um choque, um abalo em todos nós. A foto, do magistral Reginaldo Manente, era muito mais: o garoto, tinha o nariz empinado de quem tem um ar superior, contrastando com o queixinho contrito, de pesar, de tristeza. O peito estufado mostrava o orgulho da camisa que vestia.

Foi um choque.

Peguei o bloco de diagramação e falei com o Sandro:

– A ideia é essa.

Marquei a foto ocupando toda a página. Sandrão, com aquele jeito dele meio enigmático olhou, olhou e me perguntou:

– Sem manchete?

– Sem manchete, respondi.

O anarquista explodiu num vasto sorriso:

– Vamos derrubar a ditadura da manchete!

A foto em cima da mesa chamou a atenção. De repente, verdadeira romaria para ver a foto. Até que chegou Fernando Mitre, redator chefe, e decidiu:

– Vai ser a foto da primeira página.

Bati o pé, mesmo sabendo que seria inútil, afinal, a primeira página do jornal era muito mais importante que a primeira página do caderno de Esportes.

– Não vai dar, Mitre. Você vai colocar chamadas de outros assuntos e vai fuder a página.

– O Marinho tá certo, Mitre. Não é só a foto: é a página toda.

– Então eu levo a página toda, resolveu o Mitre democraticamente.

Foi um grande momento do jornalismo.

Mas, antes daquela Copa de 1982, eu havia trabalhado ao lado do Sandro. Assim que o jornal se mudou para a Marginal, eu passei a ser o subeditor de Esportes. Sandro era o editor.

Foram cerca de dois anos trabalhando ao lado dele e aprendendo.

Eu achava incrível a facilidade com que o Sandro encontrava o título perfeito, soluções criativas para todo tipo de página.

Fui aprendendo a diagramar, a criar layouts, a editar.

Primeiro, ler todas as matérias da página; depois, determinar hierarquia e tamanho das matérias; escolher as fotos ou outro tipo de ilustração. Finalmente, o título da página. Dali, levava o layout para os diagramadores que davam o apoio técnico (ajuste no tamanho das matérias, cortes das fotos) e entregava o material para os copies. E os copies eram redatores de primeiríssima.

Nunca vi o Sandro se desentender com ninguém.

A contrário dos italianos, esse mantovano era calmo, tranquilo, sempre bem humorado. Talvez ainda persistissem nele esses dons mais apropriados para que nasceu na Suíça que estava um pouquinho mais ao norte de Mantova ou o doce e romântico clima de Verona, cidade de Romeu e Julieta, bela cidade também muito próxima de Mantova.

Mas Sandro saiu de lá criancinha. Antes de chegar ao Brasil morou na Bolívia, onde caiu de amores pelo The Strongest, seu primeiro time de futebol. Depois, apaixonou-se pelo Palmeiras, seu time definitivo.

A capa dessa publicação, Sandro, é uma lembrança daquela noite de 4 de julho de 1982, do trabalho que fizemos juntos.

Uma homenagem a Você.

Mas, posso te falar?, eu preferia não fazer essa homenagem.

SANDRO VAIA FALECEU, EM SÃO PAULO, NO ÚLTIMO DIA 2 DE ABRIL

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FOTO SOFIA MARINHO
MARIO MARINHO

Mario Marinho É jornalista. Especializado em jornalismo esportivo foi durante muitos anos Editor de Esportes do Jornal da Tarde. Entre outros locais, Marinho trabalhou também no Estadão, em revistas da Editora Abril, nas rádios e TVs Gazeta e Record, na TV Bandeirantes, na TV Cultura, nas rádios 9 de Julho, Atual e Capital. Foi duas vezes presidente da Aceesp (Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo). Também é escritor. Tem publicados Velórios Inusitados e O Padre e a Partilha, além de participação em  livros do setor esportivo

A COLUNA MÁRIO MARINHO É PUBLICADA TODAS AS SEGUNDAS E QUINTAS AQUI NO CHUMBO GORDO.

… e sempre que tiver alguma novidade

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