Levanta o tapete. Por Marli Gonçalves
Se espreguice, vá abrindo os olhos com calma, estala os dedos, estica bem os braços, de um lado, de outro – relaxa o pescoço. Você precisa acordar, e eu não queria que fosse de uma forma abrupta. Já vai ser rude demais quando se deparar com a realidade fora desse mundo de ficção, de lenda, de mitologia, que nos envolvem – e você vai precisar ver.
Sabe como é naqueles filmes onde tem um hipnólogo, em geral com um relógio daqueles lindos, de bolso, que ele balança para lá e para cá, e depois do sujeito hipnotizado entregar até a quinta geração passada, ele vem e estala forte os dedos bem na cara e a vítima acorda? Fiz igual aí na sua frente: estalei forte os dedos.
Oi. Tudo bem? Diga seu nome. Espero que ele não esteja sujo, porque aqui na terra “tão jogando futebol, tem muito samba, muito choro e rock’n’ roll, uns dias chove, noutros dias bate sol. Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta, muita mutreta pra levar a situação, que a gente vai levando de teimoso e de pirraça”. Não é que as letras do Chico ainda descrevem os fatos como já fizeram antes? Só que agora ele está lá do outro lado, cantarolando outras canções, esquecendo desta, caro amigo.
Música para acordar é bom. Levanta, Sacode a poeira e dá volta por cima. “Reconhece a queda. E não desanima”, previu o Mestre Paulo Vanzolini. Nossa MPB tem uma série de músicas inesquecíveis com estrofes bastante aplicáveis para se recorrer em todos os momentos.
Essa conversa é por causa do que está acontecendo nos últimos tempos, dessa descrença. Ando encontrando muitas toalhas jogadas por aí, e isso não é bom. Não é hora. Estou sabendo que estamos mesmo numa espécie de encruzilhada parecida com a cidade de São Paulo, onde praticamente não há mais placas de direção e localização; ou quando há estão quebradas, viradas, sujas, cobertas, não servem para nada. Mas é melhor bater cabeça por aí do que ter uns e outros só plantando postes, que isso a gente está sentindo na pele que não dá certo.
Vamos tateando juntos. Cuidado só para não tropeçar no tapete que agora se levanta e mostra quanta coisa havia sido escondida debaixo dele. Mais que poeira, um lodaçal. Pior: veja a pororoca de mazelas esquecidas ou renegadas, mal resolvidas ou escondidas que afloram desse mesmo poço.
Saúde. Um minúsculo mosquito a amedrontar, a cada dia se associando mais ainda a alguma terrível doença, voando entre fronteiras. Mulheres grávidas já marcadas, sem que lhes seja dada a opção óbvia quando e enquanto ainda há tempo, se são pobres. A sociedade hipócrita assiste de camarote, ousando de lá murmurar impropérios.
Não, você não é bobo, não se preocupe. Eles acham que é, contando as histórias de carochinhas, renegando as comprinhas que fizeram, esvaziando as nossas sacolinhas. Divirta-se, você, com a cara deles, aguardando qual será a desculpa de amanhã, por exemplo, para o apartamento-que-não-é-dele-mas-foi-reformado-para-ele-e-no-mesmo-prédio-que-mais-parece-sede-de-organização-criminosa. Cada andar, cada porta, cada azulejo, cada elevador, uma suspeição.
Peço apenas que, depois de ouvir tudo o que está sendo revelado, conserve boa a sua alma. Por favor, nada de invejar pessoas de tanta sorte, que têm contas no exterior, gastam muito delas, mas não são suas donas, não sabem de onde vêm as notas que as abastecem. Não inveje não ter amigos tão bons como essas pessoas têm, que convidam sempre para descansar num sítio e o fazem sentir como se fosse de tal forma o dono dele que chegam ao ponto de ganhar reformas inteiras vindas de interpostas pessoas. Não é para qualquer um também ter a honra de ter trabalhando em casa pedreiros tão especializados mundialmente em grandes obras das grandes empreiteiras. E amigos tão humildes, que embora milionários, presidentes, proprietários, largam tudo para ir pessoalmente ver se está tudo certo, agindo como modestos mestre-de-obras. Fora os descontos. Não é para qualquer um comprar um apartamento tríplex de cobertura em prédio de frente para a praia de qualquer balneário do país por menos de 50 mil reais.
Não os inveje, por favor. Não é para qualquer um. Só para abençoados pela honestidade. Para quem tem um grupo de escribas amestrados e bem alimentados se organizando para ficarem em sua volta gritando papai, e ousando dizer que, se ele for preso, será o mártir, o Mandela do Século XXI, entre outras bobagens do tamanho de um bonde que ainda vão inventar.
Acorda. Vamos dar nossa risada. Ouvir qual vai ser a história de amanhã, enquanto voamos no tapete, pelo menos para que nada mais seja escondido debaixo dele.
São Paulo, 2016, gritos e berros de Carnaval
Marli Gonçalves, jornalista – Depois do Carnaval é que as águas vão rolar.
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