
Tudo bichado! Por Aylê-Salassiê Quintão
Tudo bichado… Somos todos culpados.
De repente… Não mais que de repente: está tudo bichado. Governo manda anular 100% dos descontos na folha de pagamentos dos aposentados e suspender os acordos do INSS com 29 organizações não governamentais que manipulam, sem autorização, este dinheiro, comprando imóveis na praia e até carros de luxo. Os desvios chegam a seis bilhões de reais. Há mais de três anos o Governo sabe disso. A omissão durou até que alguém denunciou publicamente.
Os governantes e seu entorno não se emendam. O pessoal é insaciável: “mensalão”, “petrolão”, dilapidação de Fundos de Pensão, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, do Sistema de Aposentadorias e Pensões do INSS, desvios nos Correios, no Bolsa Família, no Bolsa Educação, no Auxílio Gás, calotes no Crédito estudantil da Caixa Econômica, no Fundo Brasil, ausência de prestação de contas de organizações não governamentais, tudo coroado com a introdução de 163 Bets legalizadas para atuar no Brasil em 2025: Betano, Superbet, MagicJackpot, Super, Rei do Pitaco, Pitaco, Sportingbet, Betboo, sem falar nas loterias que tem origem lá no jogo do bicho. E ainda se fala em um novo fundo de pensão para completar a sina nos estados e municípios.
Uma confusão: jogo, corrupção, expropriação. Já não é assalto aos cofres públicos, mas às poupanças dos trabalhadores. Ninguém veio para explicar, como se imagina (direita, esquerda), mas para confundir mesmo. É a desconstrução do Estado. Novo sistema de arrecadação tributária e disputa entre municípios. Seria isso o começo do estouro fiscal ou o fim do sistema já previamente avistado pelos economistas de plantão?
Depois de introduzir a “economia criativa”, o Brasil superou a governança populista, e extrapolou sua condição de estado do bem-estar social. Expandiu a máquina pública, criando milhares de empregos na área do Governo, sem a necessidade de concurso, nem exigência de formação adequada e competência administrativa. E é nesse excesso que muita gente navega num mar inundado de narrativas infantilizadas nas quais a lama se semantiza misturando o público e o privado, qual cimento na betoneira, num mundo de aparente reconstrução.
Na época dos governos militares aconteceram, sim, vários escândalos na área da economia privada (sonegações de impostos, declarações patrimoniais falsas, superfaturamentos de obras). Mas, durante os governos civis que vieram em seguida na área da economia pública os escândalos não envolveram somente grandes empresas, mas, e sobretudo, os ganhos na área do trabalho. Ninguém foi demitido, senão de um cargo aqui outro ali. As práticas não mudam.
A partir dos governos “democráticos” civis, os escândalos com dinheiro público começaram a aflorar de uma corrupção ativa (governantes sendo agraciados com polpudas gorjetas) e passiva, venda de registros sindicais, de sentenças propinas sobre orçamentos em projetos e obras públicas e subornos de lideranças políticas, “rachadinhas” para lá e para cá. Isso é uma invenção moderna da economia criativa. Chegou a circular boato de que os orçamentos públicos eram onerados com um percentual fixo de cinco por cento, suposto recurso cujo destino ninguém sabia. Dizia-se que era para compor o “caixa 2” de campanhas políticas mantido por empreiteiras, banqueiros e empresários financiados pelo BNDES, no estilo irmãos Batista – maiores doadores da campanha de Trump, nos EUA.
Conseguiu-se assim eleger muita gente para governos, para o Congresso Nacional, com o aval de um Judiciário cada vez mais aparelhado. Que quadro! Pesquisa recente revelou que o brasileiro começa a se envergonhar da identidade.
O curioso é que as transgressões ocorrem justamente sobre os recursos acumulados “compulsoriamente” em nome dos trabalhadores. Desvios em fundos de pensão (Petros, Previ, Funcep, Correios) de aposentadorias de idosos, do FGTS, de Itaipu, Codevasf, Vale, Eletrobras, enfim tudo recurso gerado a partir do trabalhador. E para onde foi esse dinheiro? Para a Suíça, para as Bahamas para o bolso do comissariado, chamado do outro lado do planeta, de “nomenclatura”, numa alusão a pessoas especializadas em políticas públicas, por aqui meros líderes sindicais e partidários, localizados em pontos estratégicos da gestão do Estado. Um número enorme deles tornou-se milionário aos olhos de um Judiciário hermeneuticamente atrapalhado.
Os personagens não mudam. Estão entranhados na máquina do Estado, em todos os níveis Executivo, Judiciário, Legislativo, autarquias, bancos públicos e órgãos de assessoramento complementares. Subordinam-se partidos e líderes. Acusado de ser responsável por uma crise fiscal que se anuncia, o empresariado assiste imobilizado, até pela Justiça, por um “xerifado” instalado em todos os níveis que acusa, denuncia, sentencia e prende, legislando livre sobre os próprios salários. O Judiciário conspurca-se vagarosamente, transformando-se num partido político e atravessando insolente a constitucionalidade.
A exemplo dos chineses, gaba-se de uma balança comercial superavitária que, internamente, gera escassez de alimentos e provoca um aumento do custo de vida. Os produtores investem com parcimônia. O jogo está instalado no país. E não é pouca gente que defende os cassinos e loterias. Portaria recente do Governo inclui jogos de tiro na lista de games liberados para apostas. Jogador passou a ser visto como um “investidor” que aplica nas ilusões coletivas e produz uma carência generalizada. O Banco Central tenta fazer milagre.
Enfim, o Brasil está diante de uma nova onda de transgressões e transgressores autorizados pelo eleitorado. Não se governa, se administra interesses. Geram-se crises artificiais, polêmicas, e ocupa-se o tempo dos incautos e empoderados por ideologias arcaicas com narrativas controversas, e a polarização no campo político.
Ela é a própria governança.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Consultor de projetos sociais | Consultor da Catalytica Empreendimentos e Inovações Sociais. Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “AMERICANIDADE”, “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018