COTAS TRANS

Cotas trans em universidades e a questão do mérito acadêmico

Nas entrelinhas, o que essa política de cotas trans, por mais bem intencionada que seja, insinua é que pessoas transgênero seriam intelectualmente inferiores às cisgênero, por isso precisariam de uma mãozinha…

Cotas trans em universidades

Por Aldo Bizzocchi

Algumas universidades brasileiras que já adotam o sistema de cotas para o ingresso de estudantes pretos, pardos, indígenas, quilombolas e de baixa renda também adotaram nos últimos tempos cotas para pessoas transexuais, travestis e não binárias, em mais um lance das chamadas ações afirmativas ou de diversidade e inclusão.

Cotas raciais e socioeconômicas podem até ser justificáveis tendo em vista que negros são em sua maioria pobres e, consequentemente, obrigados a cursar o ensino básico na escola pública, que não lhes dá base para ser aprovados nos disputadíssimos vestibulares das grandes universidades. Mas eu pergunto: o que identidade de gênero tem a ver com desempenho acadêmico? Pessoas transexuais precisam de cotas para ingressar em universidades? Aquelas que são pobres porque sua condição sexual as marginaliza economicamente já estão contempladas nas cotas para estudantes de baixa renda. No entanto, os gays e trans brasileiros não têm, em média, condição socioeconômica muito diferente da dos heterossexuais cisgênero. Há homossexuais, transexuais e não binários em todas as classes sociais e em igual proporção, afinal orientação sexual e identidade de gênero não escolhem classe social. É verdade que muitos travestis acabam na prostituição, mas estes em geral já provêm de um ambiente pobre, para não dizer miserável. E mulheres heterossexuais que se prostituem também costumam ser oriundas de famílias carentes, quando não desestruturadas. Portanto, estão todos no mesmo balaio da pobreza endêmica que assola nosso país há séculos e que nenhum governante ou legislador tem interesse em eliminar.

Marcos Lopes, professor de literatura geral e comparada da Unicamp, em seu artigo Consenso e liberdade acadêmica (https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/consenso-e-liberdade-academica/?srsltid=AfmBOory4XoNXA4sQ-8EkggJ2Gt4NgJv4pNQrHqnPH_g5FlbmcwtE9rv), publicado neste domingo, 20 de abril de 2025, no jornal O Estado de S. Paulo, alerta em primeiro lugar que essas ações afirmativas beneficiam um número mínimo de pessoas, isto é, a maioria dos negros, pobres, transexuais, etc., não tem acesso ao ensino superior nem mesmo por meio de cotas. Em segundo lugar, que esses benefícios, criados para ser temporários, acabam perpetuando-se, o que, a meu ver, se constitui num privilégio, num “direito adquirido” inamovível, como são hoje, por exemplo, os supersalários do Poder Judiciário. Em terceiro, ele aponta, citando Thomas Sowell no livro Ação afirmativa ao redor do mundo, que “o incentivo para grupos preferenciais raramente alcança os resultados prometidos, podendo produzir efeitos colaterais indesejáveis para o conjunto da sociedade”.

Mas o ponto mais nefasto que ele destaca é o problema da autocensura: “Há, sem dúvida, uma maioria silenciosa, na comunidade acadêmica, que discorda dos mecanismos de implementação de certas ações afirmativas. Contudo, ela teme o cancelamento e os rótulos de ‘direitista’, quando não de ‘fascista’ […]”. E a universidade deveria ser o espaço do debate de ideias, do confronto de visões diferentes e mesmo antagônicas para chegar a um consenso que nos aproxime da verdade. Mas transformou-se no lugar da unanimidade burra de que falou Nelson Rodrigues e do pensamento único e inquestionável. Em suma, a universidade é a nova Igreja.

A escolarização medíocre proporcionada pela rede pública de ensino afeta igualmente negros e brancos, homens e mulheres, héteros, homos e transexuais desde que sejam pobres e não tenham condições de frequentar uma boa escola privada — se bem que hoje em dia também há muitas escolas privadas que não passam de comércios disfarçados, que não educam, apenas adestram seus estudantes.

Nas entrelinhas, o que essa política de cotas trans, por mais bem intencionada que seja, insinua é que pessoas transgênero seriam intelectualmente inferiores às cisgênero, por isso precisariam de uma mãozinha das cotas para ser aprovadas em um vestibular. O pressuposto subjacente a essa medida deveria deixar indignada a comunidade LGBTQIAPNXYZ+. Mas quem vai se sentir ofendido em ganhar um privilégio, ainda mais um privilégio imerecido, não é?

O pior de tudo é que, com essas ações afirmativas, a universidade vai aos poucos deixando de ser um centro de excelência e produção de conhecimento de ponta para tornar-se cada vez mais um agente de assistencialismo barato e demagógico.

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ALDO BIZZOCCHIAldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.

Autor, pela Editora GrupoAlmedina, de “Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”

Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br

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