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Luar. Por Antonio Contente

  …como quando nasceu o mundo, o luar se filtra. Passa pelas aberturas das árvores cujas copas estão unidas, e os raios escorrem sobre galhos, troncos, até atingir o chão. Ali, depositado sobre as folhas mortas, torna-se inconsútil manto sob o qual continua a brotar a vida…

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Ora, amigos, vamos falar a verdade, parece meio difícil, nos tempos atuais, escrever sobre luares. Exatamente por sabermos que eles são sempre de ontem, ou anteontem, como quase tudo de belo que existe. Afinal do passado é que nos chegam as estrelas cadentes, os cantos das sabiás na maciez das auroras, ou a casa ancestral com beirais feitos para as cascatas de chuvas. E que depois, quando elas param, são pontos de pouso para os bem-te-vis que costumam abrir os peitos no saudar a volta do sol e da luz.

 O luar que se vê hoje, agora, de alguma forma nos chega enviado pelos silêncios de outrora. A baía que avisto da minha janela aberta para as águas que formam o enorme delta do rio Amazonas, transmite meigos recados. A me garantir que, apesar de tudo que tanto vem modificando o mundo, ela continua linda.

Há o eterno encanto da prata posta sobre a aquática superfície, a mesma que, nos anos quinhentos, atravessou, de caravela, o navegante e aventureiro espanhol Vincente Pinzon. Este luar não pode ser do futuro. Simplesmente porque o que ainda está por chegar talvez não permita que sequer se pronuncie uma palavra tão linda e tão barroca como plenilúnio. Quanto mais  escrever sobre o seu significado.

 E, exatamente como quando nasceu o mundo, o luar se filtra. Passa pelas aberturas das árvores cujas copas estão unidas, e os raios escorrem sobre galhos, troncos, até atingir o chão. Ali, depositado sobre as folhas mortas, torna-se inconsútil manto sob o qual continua a brotar a vida.

Também como quando nasceu o mundo o luar se espalha. Para bater sobre duras pedras que se tornam maleáveis como um acalanto sem tédio. Espalha para se refletir no dorso do grande peixe que salta fora d’água no pulsar da maré enchente, tomada por espumas impecavelmente alvas pela luz melancólica que o céu, que já não protege tanto como antigamente, nos manda.

Ainda e sempre, como quando nasceu o mundo, o luar se corporifica e navega. No refletir das asas da coruja branca, esta águia das noites, que vai à caça com a certeza da captura; pra nós oferecendo a rara beleza do método. Reflete-se no brilho do olhar, inesperadamente captado, do passarinho que contém, no ninho de espessura tênue, os filhotes e a certeza do canto.

E até sob a terra o luar vai. Para dali trazer à superfície o brotar viçoso da semente que a brisa jogou sobre o solo e a enxurrada afundou para a espera da ordem dada pela selenita circunstância. Que, no seu escorrer primevo, arrancará o fruto do dormir sereno. Nutrindo-o para, afinal, melhor sazoná-lo depois o sol, com a cor pigmentada pela maravilha.

 Numa outra ilha do delta, não muito longe desta em que  agora, circunstancialmente, estou, há umas ruínas muito antigas. Tanto, e tão, a ponto de podermos dizer delas que seriam tão velhas como o suspiro original do big-bang. Contam os historiadores que as paredes abrigaram, em épocas provavelmente anteriores à chegada dos portugueses, uma espécie de missão na qual pousavam os primeiros desbravadores espanhóis do rio Amazonas. E se hoje, durante o dia, o amontoado de pedras batidas pelo vento constante e pelo sol recebem apenas gaivotas, nas noites de luar opera-se a transfiguração. Os arcos que levavam a amplos compartimentos se reconstroem. Janelas reabrem para a intimidade das brisas, e pessoas mais atentas juram já ter visto homens cobertos por armaduras ou carregando espadas nas cinturas a circular pelos espaços de sisudez com abertura a complacências. Um dia, já faz tempo, passei por lá numa tarde de verão em que os camaleões se postavam, cabeças erguidas em busca de sombras como que para poder respirar. Porém à noite, tomada pelo frescor das chuvaradas que sempre antecedem o luar, pude ver o que restou das paredes de pedras a brilhar com a luminosidade. Não, não vi vultos dos navegadores antigos. Mas senti sim a lição do tempo a ensinar que a beleza apreendida é dádiva do que não tem resposta.

Na acachapante lua cheia que despencou sobre mim na ilha que ora me abriga, sou deslocado lobisomem quase a bramir para o alto no justo instante de ser atingido pelo primeiro raio de luz. E nesta aventura de escrever hoje sobre um tema que é de ontem com apaziguadas noções do anteontem, me recomponho a descer para o pomar a fim de respirar os cheiros da noite. A lua, que veio do mar cedo, agora está bem no alto, e se prende entre duas copas de árvores. Ainda bem, pois nada pode doer mais do que vê-la, nas cidades, quando aparece presa entre edifícios. Se eu não insistisse em de vez em quando me refugiar aqui, certamente jamais escreveria sobre essa coisa antiga, porém tão linda, que é um decente luar. Boa noite.

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

 

2 thoughts on “Luar. Por Antonio Contente

  1. Antônio, tu escreves tão bem , tão bem, tão gostoso , que não dá pra parar de ler . Quando a crônica chega ao fim a gente sente necessidade de recomeçar a leitura pra conferir se não deixou uma linha pra trás. E se ficou, a gente recomeça outra vez essa bendita inteirinha. Que delícia !!!! Parabéns, Antônio, e ao Luar que me encanta .

    1. Meu prezado amigo, grande Cronista Antônio Contente. De tudo de lindo que sempre nos presenteia com Crônicas, para mim esta sobre o Luar, é tão bela, poética, que a vejo como sendo a obra de um novo Poeta, de um tempo e espaço novos, agora ,escrevendo lá do Delta do seu longo Rio Amazonas, o seu magnífico ” Os Luziadas”!

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