
Tarifaço de Trump. Por Aylê-Salassié Quintão
O “TARIFAÇO” E AS DESOVAS COMERCIAIS CHINESAS
Até parece que estamos todos entendendo essa chamada de “guerra tarifária”, aberta por Donald Trump contra uma avalanche de produtos estrangeiros, que entram diariamente no mercado consumidor dos EUA. Trump recorreu, num primeiro momento, às tais “tarifas recíprocas”. Com elas, procurava onerar internamente em 30% os preços dos produtos procedentes da Ásia: em 20%, os que chegavam da Europa; e 10%, os da América Latina. Nessa maré, os brasileiros foram gravados com 10 por cento, embora o aço e o alumínio sigam com gravames tarifários de 25%, estabelecidos anteriormente.
Pela insistência em confrontar a escalada da reciprocidade estabelecida inicialmente em 35%, os produtos chineses foram taxados em 145 %. O Governo da China aventou inclusive proibir a entrada de produtos norte-americanos em seus mercados. É o que pode acontecer também nos EUA com os produtos chineses, cujos gravames tornam competitivos aos similares norte-americanos. São eles acusados de principais responsáveis pelo déficit comercial dos Estados Unidos, situado entre 2 a 3 trilhões de dólares. O PIB dos chineses vem crescendo em torno de 5 % ao ano, em média, enquanto o dos EUA ficam entre 1,5% a 3%. A remuneração do produtor chinês, ao contrário, cai 2,2 % por cento ao ano, e os preços internos aumentam ao redor de 0,2% (Patrick, Igor, FSP 12.04.25). A China tem investidos US$ 760 bilhões em títulos do governo americano.
“Todos querem fazer suas reservas em dólar norte-americano, vendendo para os Estados Unidos, mas não estão dispostos a comprar nossos produtos”, diz Trump. A maioria dos países que colocam seus produtos nos Estados Unidos aplicam tarifas de até 97% sobre as importações norte-americanos. É o caso dos asiáticos, que operam com baixas remunerações do trabalho e fazem uso de tarifas depreciadas, tornando os produtos fabricados por eles altamente competitivos nos Estados Unidos. O mercado norte-americano consumiria cerca de 38% da produção mundial.
O propósito do tarifaço, anunciado por Trump, é, segundo ele, proteger a indústria dos Estados Unidos, retomando os velhos níveis de produção e de produtividade, atraindo de volta as empresas nacionais que migraram, assim retomando os empregos no setor manufatureiro que migraram, sobretudo para a China. Desta maneira, espera, reduzir o déficit comercial norte-americano, que varia entre um a 3 trilhões de dólares anuais. Para essas empresas que migraram para o exterior seduzidas por incentivos e encargos tarifários e não tarifários mais amenos, Trump está oferecendo isenções fiscais e até financiamentos para o seu retorno ao país. Os opositores o acusam de quebrar as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), estabelecidas para regular o livre comércio. Lembra, entretanto, que os chineses, mesmo depois de abrigados pela OMC como “economia de livre mercado”, mantêm uma superprodução voltada para a exportação sustentada por baixos salários, outras desonerações e facilidades financeiras.
Os EUA projetam também corrigir uma dívida externa que se aproxima dos US$ 38 trilhões (para uma economia que movimenta anualmente US$ 36 trilhões). Revela Trump que uma auditoria nas ajudas humanitárias, ambientais, apoios financeiros para organizações não governamentais e financiamento para instituições internacionais, constatou que os EUA alimentam no mundo campanhas contra si próprio. Desvios de finalidades e fraudes com as doações consomem um trilhão de dólares. Estão suspendendo tudo, e investigando.
Mas Trump vai mais além. Trata essas questões como de segurança nacional. Geopoliticamente, constatou-se um cerco se fechando sobre os Estados Unidos que, com a globalização, rotas de transporte mundiais sob controle (Seda, Ártico, Mar Vermelho, Mar Negro, até o Panamá) e algumas de suas principais empresas estratégicas migrando para fora. Tudo tem levado os EUA a depender da importação de produtos, insumos e componentes eletro eletrônicos produzidos no exterior, quando, de acordo com Trump, o território norte-americano tem tudo isso disponível, mas compra de outros para compensar relações comerciais assimétricas. “Estamos sendo roubados”, afirma.
Trump é acusado de quebrar as regras da OMC, condicionantes contornadas pelos chineses por meio de artifícios tributários, baixos salários e amplas desonerações. O certo é que o “tarifaço” de Trump gerou uma imprevisibilidade na economia mundial com perspectivas de uma “recessão” e até, segundo o ex-ministro da Fazenda do Brasil, Maílson da Nóbrega, uma “depressão”. Embora a economia de mercado tenda para uma estabilização, mesmo num patamar como esse, ” os efeitos permanecerão por anos”. De acordo com a revista The Economist, praticam-se no mundo mais de dois milhões de tarifas diferenciadas: “É o caos completo.” Com o “tarifaço”, a economia mundial tende a passar por uma profunda reestruturação.
De maneira oportunista, navegando na vertente das “retaliações”, o Presidente brasileiro sancionou “sem vetos” – está entendendo tudo – a Lei de Reciprocidade Tarifária. A medida tem um caráter genérico perigoso. Não se limita a retaliar iniciativas hostis somente do governo dos Estados Unidos. Estende seus efeitos para qualquer país que negocie comercialmente com o Brasil, e atribui ao governante de plantão, unilateralmente, autonomia para adotar iniciativas semelhantes, inclusive suspender concessões comerciais e até mesmo deixar de cumprir obrigações com a chamada “propriedade intelectual”.
A iniciativa retaliatória, temperada com uma autonomia tarifária, longe da orientação acordada na Organização Mundial do Comércio, teve a ratificação do Congresso Nacional. Deu-se legitimidade ao governo brasileiro para impor, unilateralmente, tarifas adicionais e barreiras não tarifárias. A lei estabelece, contudo, que as ações do Governo Brasileiro deverão ser precedidas sempre de consultas públicas e avaliação técnica, embora, em casos excepcionais, o governo possa adotar contra medidas provisórias de forma imediata.
O bom senso recomenda que, antes de qualquer ação prática, o governo brasileiro abra uma discussão com os EUA sobre a questão. Embora os chineses liderem as importações do Brasil em mais de 30 por cento, os EUA com seus 19 por cento, somados aos tarifações de aliados (52%), podem criar uma problema grande para os brasileiros até por meio de medidas não tarifárias: direitos humanos, por exemplo. Com a Conferência Mundial do Clima batendo às portas, conversa fiada não ajuda em nada. Mesmo porque o Brasil tende a ser induzido a importar os excedentes chineses que vão ser disponibilizados pelo “tarifaço” de Trump, e ter de conviver com inflação e juros estratosféricos, bem como com a quebra empresas brasileiras e a elevação das taxas de desemprego, como efeito da incapacidade de competir internamente com as desovas de mercadorias chinesas pelo mundo.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Consultor de projetos sociais | Consultor da Catalytica Empreendimentos e Inovações Sociais. Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “AMERICANIDADE”, “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018