
Quando a fama vem pelo motivo errado. Por Aldo Bizzocchi
… o pior tipo de fama é quando se fica famoso pelo motivo errado. Pois é mais ou menos o que está acontecendo comigo agora (não que eu esteja ficando famoso, ainda não cheguei lá, mas me aguardem!)…
Certa vez, o escritor e humorista Luís Fernando Veríssimo afirmou que o pior tipo de fama é quando se fica famoso pelo motivo errado. Pois é mais ou menos o que está acontecendo comigo agora (não que eu esteja ficando famoso, ainda não cheguei lá, mas me aguardem!).
É que em 2017 publiquei numa revista internacional um artigo científico chamado How many phonemes does the English language have? (“Quantos fonemas tem a língua inglesa?”, disponível em https://www.arcjournals.org/pdfs/ijsell/v5-i10/6.pdf), no qual eu sustentei (e provei) que, contrariamente ao que dizem os manuais de fonologia da língua inglesa, o inglês tem 35 fonemas e não 44. O caso é que esses manuais consideram como fonemas distintos o que são na verdade alofones, isto é, variantes combinatórias, dos mesmos fonemas. Também consideram ditongos como se fossem uma única unidade, sendo que eles podem perfeitamente ser decompostos em uma vogal e uma semivogal. Nesse sentido, o modelo de sistema fonológico que propus é mais simples, mais lógico e obedece mais rigorosamente aos critérios de identificação de fonemas postulados pela fonologia clássica.
Esse artigo tem tido muitas citações (só no Google Acadêmico são 35 até agora), o que deveria me deixar muito feliz, afinal não é fácil um pesquisador latino-americano ter um artigo falando sobre a língua inglesa citado por pesquisadores de diversas partes do mundo, inclusive de países de língua inglesa. No entanto, em quase todos os artigos que citam meu trabalho o que se lê é algo do tipo “Segundo Bizzocchi (2017), a língua inglesa possui 44 fonemas”. Ou seja, estão me creditando por afirmar algo que eu não só não afirmei como ainda disse que está errado!
O que eu digo logo no início do resumo do artigo é:
Most phonology textbooks claim that the phonological system of the English language is composed of 44 phonemes, of which 24 are consonants (actually, two are semivowels) and 20 are vowels. Yet, this number results of a misinterpretation of the English vowel system, since several authors consider clusters of sounds (diphthongs and pseudo triphthongs) as single phonemes, as well as combinatorial allophones of the same phoneme as distinct phonemes.
Ou, traduzido em bom português:
A maioria dos manuais de fonologia afirma que o sistema fonológico da língua inglesa é composto de 44 fonemas, dos quais 24 são consoantes (na verdade, dois são semivogais) e 20 são vogais. No entanto, esse número resulta de uma interpretação errônea do sistema vocálico inglês, uma vez que vários autores consideram grupos de sons (ditongos e pseudotritongos) como fonemas únicos, bem como alofones combinatórios do mesmo fonema como fonemas distintos.
Parece que os autores que citam meu artigo não se dão ao trabalho de ler o resumo inteiro (que dirá o trabalho inteiro!), mas restringem-se à primeira oração do parágrafo: “A maioria dos manuais de fonologia afirma que o sistema fonológico da língua inglesa é composto de 44 fonemas”. Conclusão: estou ficando conhecido no meio científico internacional por ter afirmado algo que estou justamente contestando. E com provas. Isso me faz desacreditar da eficácia da ciência em produzir conhecimento verdadeiro. Não por culpa da própria ciência, que, a meu ver, é o método mais seguro de que a humanidade dispõe para chegar o mais próximo possível da verdade, e sim por culpa de maus pesquisadores, que sequer entendem o que leem e propagam informações falsas que outros pesquisadores, igualmente incautos, aceitarão como verdadeiras e passarão adiante.
O processo industrialmente frenético com que são produzidos hoje os papers acadêmicos, inclusive com a ajuda da Inteligência Artificial (isso quando não é ela que redige 100% do artigo), por força de uma pressão institucional das universidades, que querem a todo custo elevar seus índices de produtividade, e das editoras científicas, para quem quanto maior a quantidade de publicações, maior o lucro, tem gerado trabalhos científicos sem nenhuma qualidade e, o que é pior, com resultados altamente questionáveis, quando não absolutamente falsos.
Essa industrialização do trabalho científico leva ao descrédito da ciência junto à opinião pública para alegria dos negacionistas, dos terraplanistas, dos antivacinistas, dos criacionistas, dos trumpistas, dos bolsonaristas… E eu, defensor ferrenho do método científico, corro o risco de ficar com a pecha de disseminador de fake news científicas. Durma-se com um barulho desses!
Ou, como se diz por aí: seria cômico se não fosse trágico.
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Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.
Autor, pela Editora GrupoAlmedina, de “Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”
Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br