
Indignação. Por Myrthes Suplicy Vieira
…A indignação tem o mau hábito de reeditar, sob uma ótica dissimulada, a luta do ‘nós x eles’, colocando em lados opostos as ‘pessoas de bem’, amantes da verdade, da justiça e da ordem, ou seja, todos nós que nos pautamos pelas regras civilizatórias mais elementares e somos tementes a Deus, contra eles, os bandidos, os psicopatas, os genocidas, os corruptos e os que “não têm Deus no coração”…
Para espanto da plateia, o filósofo francês Luc Ferry afirmou certa vez durante uma palestra no Brasil que a indignação não pode ser considerada em absoluto um sentimento moral. E isso por uma razão muito simples: só nos indignamos com as ações e atitudes dos outros, nunca com nossas próprias. Temos sempre uma desculpa pronta para justificar qualquer ato moralmente reprovável que porventura tenhamos cometido: “Eu estava transtornado, perdi a cabeça”, “Estava sem dormir e tinha bebido muito”; “Só revidei depois de anos de injustas agressões contra mim”; “Não quis ofender ninguém com meu comentário, apenas usei as palavras erradas no calor do momento”.
Curiosamente, todas essas circunstâncias ‘atenuantes’ tendem a ser desconsideradas quando o que se está avaliando é a transgressão cometida por terceiros. Então, se sob o manto da moralidade esconde-se apenas a vontade de prejulgar e condenar, não faz sentido pedir isenção antecipada para os próprios desvios éticos, não é mesmo? Se eu acho que as contingências devem sempre ser levadas em consideração na análise da culpabilidade ou não da pessoa que cometeu a infração ética, então não passa de hipocrisia o arroubo passional condenatório demonstrado instantaneamente pela imensa maioria ao saber de uma notícia escabrosa de jornal, tevê ou de portais de notícias da Internet.
A indignação tem o mau hábito de reeditar, sob uma ótica dissimulada, a luta do ‘nós x eles’, colocando em lados opostos as ‘pessoas de bem’, amantes da verdade, da justiça e da ordem, ou seja, todos nós que nos pautamos pelas regras civilizatórias mais elementares e somos tementes a Deus, contra eles, os bandidos, os psicopatas, os genocidas, os corruptos e os que “não têm Deus no coração”. Montados em nossa alegada superioridade moral, rejeitamos até mesmo a ideia de incluí-los na categoria de humanos: são todos monstros, animais, aberrações da natureza. Assumir que a condição humana abrange tanto um lado luminoso de altruísmo quanto um lado sombrio de busca desenfreada pela autogratificação a qualquer preço é algo inapreensível pelas mentes honradas dos indignados crônicos. E, quando se revela que, em muitos casos, os causadores de nossa indignação eram anteriormente cidadãos pacatos, tímidos e gentis, essa divisão desaba por absoluta falta de sentido.
A ciência ainda não conseguiu identificar com clareza quais fatores biológicos, neurológicos e psicológicos/psiquiátricos estão na base de tanta torpeza humana. A discussão não termina nunca: a pessoa nasce assim ou é o ambiente no qual ela está inserida que favorece a eclosão de surtos de violência? A perversidade é fruto de genes deficientes ou de lares disfuncionais? Ela atinge todas as classes sociais ou é exclusividade das populações marginais? O que resta exaustivamente comprovado é que nunca nos consideramos pessoalmente sujeitos a cair na criminalidade, acreditamos ser imunes à doença mental e apostamos que nunca perderemos a capacidade de empatia e autocontenção, mesmo se submetidos a condições degradantes de vida e intenso estresse cotidiano.
Mas, se Luc Ferry está certo, que nome dar, então, ao sentimento que nos assola ao sabermos das atrocidades cometidas diariamente por indivíduos pertencentes a todos os setores da experiência humana? Talvez se pudesse denominar aquela sensação de travamento do diafragma, falta de ar, aperto no peito e nó na garganta de revolta, aversão, repulsa, estarrecimento ou qualquer outro sinônimo, mas nenhum deles parece dar conta de todo o peso emocional contido nos contínuos atentados à dignidade humana. De todo modo, cabe perguntar, parafraseando Shakespeare: se o sentimento de indignação tivesse outro nome, seria por acaso mais fácil de absorver, metabolizar e transformar?
E ainda, por que a tônica dos dias atuais parece ser a indignação compulsiva, em série? Somos expostos todos os dias a uma série infindável de notícias indignantes, veiculadas sempre em tom alarmista – seja no plano da nova ordem geopolítica, das guerras expansionistas e genocídios, as referentes à emergência climática, ao negacionismo científico ou aos danos psicológicos causados pelo avanço da IA, isso sem falar dos horrores próprios da criminalidade urbana.
O maior legado que minha professora de psicologia social, Ana Verônica Mautner, me deixou foi a ideia de que “Às vezes, é preciso não compreender”. Se, ao invés de tentarmos explicar os comos e os porquês da morte da empatia e dos valores iluministas, nos deixássemos afundar na perplexidade e na incompreensão, talvez fosse mais fácil encontrar respostas para reeducar nossas crianças e jovens. Só assim nos daríamos conta de que os mesmos demônios nos habitam.
Uma das consequências mais devastadoras da indignação em série é que ela permite a criação de uma espécie de calo emocional que acaba nos insensibilizando para a dor e o sofrimento causados nesta situação e nos preparando emocionalmente para reagir somente a crimes ainda mais perversos na próxima. É consequência da assim chamada banalização do mal.
Depois de muito pensar, acabei me dando conta de que não há nada de aleatório na divulgação espetaculosa de tantos fatos indignantes. Ao contrário, há uma intencionalidade difusa razoavelmente fácil de identificar por trás das manchetes: a necessidade de gerar a sensação de desamparo e desesperança crescentes na sociedade para, em consequência, vender a ideia de que só um líder absolutista com punhos de ferro poderá dar fim a toda espécie de injustiças e nos guiar rumo à eterna bem-aventurança.
Trump, Bolsonaro e Milei estão aí para provar.
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(*) Myrthes Suplicy Vieira – é psicóloga, escritora e tradutora.