
Camillo canta Roca. Por Inorbel Maranhão Viégas
Márcio de Camillo… Uma chance para descobrir o universo poético e musical do autor do clássico “Trem do Pantanal”
O compositor carioca mais sul-mato-grossense do mundo, Geraldo Roca, desistiu de viver muito antes do que qualquer um supunha imaginar. Mas a chance do Brasil conhecer a complexidade e beleza por trás de suas letras e músicas chega agora às plataformas digitais com o projeto “Márcio de Camillo canta Geraldo Roca”
Geraldo Roca nasceu no Rio de Janeiro. Rompeu fronteiras, estudou, leu e mergulhou a avidez de sua inquietude no que havia de mais efervescente da criação literária e musical, naquele início dos anos 70 do Século passado, sem se descolar de suas raízes pantaneiras. Carregou o pantanal no coração desde sempre. Faria agora 71 anos, mas decidiu encurtar sua passagem por este plano dez anos atrás. Foi um choque para a família, para os amigos e amantes da sua trajetória criativa.
Bem antes de partir, deixou o litoral carioca para fazer parte, à sua maneira, de outra versão do Clube da Esquina, no coração do Planalto Central do Brasil. Esteve e está no DNA da música do Litoral Central. Roca fez parte da mesma safra de talentos que revelou, Almir Sater, Tetê Espíndola, Paulo Simões, Guilherme Rondon, Geraldo Espíndola, entre tantos outros, surgidos do lugar onde o Brasil foi Paraguai, como diz a poesia de Paulo Simões, seu parceiro de aventura na criação do clássico “Trem do Pantanal”.
A música que o projetaria para além da fronteira regional nasceu de uma aventura que começou no Rio de Janeiro e terminou em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Geraldo e Paulo Simões, recém-chegados aos 17 anos, embarcaram no “trem da morte” e experimentaram todas as agruras juvenis que um mochileiro poderia viver naquele momento. Entre um perrengue e outro, tiveram tempo para escrever a primeira estrofe da música sem a preocupação de dar-lhe um título definitivo. Depois de pronta, Trem do Pantanal virou hino extraoficial do Mato Groso do Sul, conhecida primeiro na voz de Almir Sater e, a partir daí, gravada por muitas outras vozes que a tornaram nacionalmente conhecida.
Camillo resgata e grava Roca – a voz de um, a alma do outro
Esta semana, pelo WhatsApp, recebo mensagem de Márcio de Camillo me avisando sobre seu novo trabalho. “Márcio de Camillo canta Geraldo Roca”. Um show ao vivo que virou disco e já está disponível nas plataformas digitais. Marcio foi vizinho de Geraldo Roca, em Campo Grande. Moravam num quadrilátero privilegiado da música e da poesia. De um lado, Almir Sater, de outro, Geraldo Roca, na ponta que fecha o quadrado, a casa do poeta Manoel de Barros.
Como não acredito em acaso, creio firmemente numa costura invisível que tratou de alinhavar o tempo e desenhar futuro musical de Márcio de Camilo. Isso fez dele um dos mais legítimos herdeiros da música do Litoral Central, conceito criado por Geraldo Roca para traduzir um pedaço de Brasil onde a água doce domina uma vastidão de terra que, supõe-se, um dia foi mar.
Aproveito a estrada entre a minha casa e o trabalho para ouvir o disco. Ouvir Roca na voz de Camillo é quase um delírio. Uma surpresa, uma saudade imensa, muitas lembranças. Os dois me levam de volta ao “Campão”, como carinhosamente chamamos a cidade de Campo Grande/MS.
A praia pantanal me serve de ponte para unir, em mar aberto imaginário, o Rio de Janeiro – lugar de nascimento do Geraldo – ao coração do Brasil, onde Geraldo Roca se fez e se desfez deste plano. Seu coração, irrigado por sangue pantaneiro, fazia dos campos alagados, das fronteiras paraguaia e boliviana seu berço metafísico. E foi assim sempre.
Talvez isso também sirva pra explicar por que a passagem meteórica dele por aqui tenha início figurado e fim real nestas plagas entre o pantanal do Paiaguás e Nhecolândia, onde aprendemos desde cedo a sonhar em Guarany e poemar em Manoelês.
Os carros passam por mim em alta velocidade. Eu ouço Camillo cantando Roca. E me transmuto. O punhal afiado da poesia de Geraldo Roca corta manso na voz de Camillo, sem perder o fio, nem a capacidade aguda de ferir de morte o senso comum. Não, Geraldo não cabe em uma única caixinha. E Márcio sabe disso.
Às vezes, ele encarna um bardo. Um Dylan pantaneiro em letras incomuns, longas e lisérgicas. Em outras, reúne numa só figura a essência folk de Crosby, Still, Nash & Young. Mas nesse universo BeatFolkPolkaRock há espaço para a mansidão de um Caymmi fronteiriço, para a sutileza urbana de um Jobim. Geraldo, como eu disse, não cabe numa caixinha.
E tudo isso se transforma em mais, muito mais, na homenagem à altura dos arranjos, das violas, da flauta, do cello reunidos por Márcio de Camillo nesse show que vira disco e que se torna eterno de agora em diante. Pra gente não se esquecer. Nunca.
Quando Geraldo Roca decidiu sair de cena, fechar as portas desse mundo, que já lhe arreliara o suficiente, era muito cedo pra isso. Foi o que todos pensamos. Mas ele era dono de seus próprios rumos. Sua poesia e sua música seguem aqui. Pra nossa sorte, a desassossegar nossos ouvidos e almas. Agora, mais ainda, pra todo o Brasil se dar conta do que ele foi, do que ele fez, do que é capaz de seguir fazendo apesar da ausência entre nós. A audição termina. A estrada também. Fica no ar a voz infinita de Márcio de Camillo que canta Geraldo Roca.
PS.: Márcio. A foto da capa é uma obra de arte. É você nele… É ele em você. Uma fusão, uma incorporação. Cara… que disco!!!!
Serviço:
Márcio Camillo canta Geraldo Roca
Direção Geral:
Luiz André Cherubini
Músicos convidados:
Denise Ferrari (voz e cello)
Tiago Sormani (voz, sopro e teclados)
Nath Calan (voz, bateria e percussão)
No Spotify
Ao vivo:
Em Dourados – MS
Auditório Wilson Biasotto, da UFGD
Dia 05/abril/25 – sábado – 20h
Ingressos gratuitos
_______________________________________
Inorbel Maranhão Viégas – escritor, jornalista e poeta, vive em Brasília. Autor de, entre outros, “Cápsulas de Oxigênio”