
Imigrantes, os inimigos da vez. Por Fernando Gabeira
By Chumbo Gordo 1 dia ago… A mesma dureza que aplicava aos pobres inquilinos de seus prédios, transfere agora para os imigrantes. As pessoas estão sendo diariamente presas, mulheres separadas dos maridos americanos, pais de filhos, há hostilidade nas ruas…

PUBLICADO ORIGINALMENTE EM O GLOBO E NO SITE DO AUTOR, www.gabeira.com.br, 24 DE MARÇO DE 2025
Estamos vivendo uma época estranha e sinto-me muito envolvido nela para compreendê-la. Tenho algumas intuições, levanto hipóteses mas simplesmente vou vivendo na esperança de um dia olhar para trás e dizer com calma: foi assim.
Durante a semana, andei lendo sobre o cotidiano em Gaza, durante o precário cessar fogo. As pessoas vivem nos escombros, sem condições higiênicas e há o frio que matou sete bebês de hipotermia.
Quando terminei minha pesquisa, a guerra recomeçou e o bombardeio matou 400 pessoas.
Na mesma semana, assisti ao filme O Aprendiz que conta a história de Donald Trump. Biografias às vezes exageram mas, de qualquer forma, custo a acreditar que se tornou presidente dos EUA duas vezes. As lições que aprendeu do advogado Roy Cohn talvez ajudassem a ganhar dinheiro mas não parecem úteis para um estadista: atacar sempre, considerar a verdade algo relativo e nunca admitir uma derrota.
A mesma dureza que aplicava aos pobres inquilinos de seus prédios, transfere agora para os imigrantes.
As pessoas estão sendo diariamente presas, mulheres separadas dos maridos americanos, pais de filhos, há hostilidade nas ruas.
A ida dos venezuelanos para El Salvador, que vai mantê-los na prisão por um custo de US$6 milhões, foi um espetáculo repressivo. Os presos são forçados a andar curvados, as cabeças raspadas diante das câmeras.
Tudo isso acabou me dando uma ligeira ideia dos tempos em que vivemos, sobretudo ao ler no New York Times o artigo de uma pessoa trans. Ela fala com clareza que o processo de negação de sua humanidade se parece com o que se passou com os judeus, ciganos e gays no III Reich. É preciso destituí-los de todos os direitos para desaparecer com eles.
Há diferenças entre aquele período e o que se passa agora nos EUA. Mas há também algumas semelhanças que nos lembram o suicidio de pessoas sensíveis, como o escritor Walter Benjamin, que tentava cruzar as fronteiras de França e da Espanha, em fuga do nazismo.
Ao ler o artigo no Times senti um amargor estranho que havia sentido naquele momento da Guerra das Malvinas diante das fotos de navios envoltos em brumas num mar encapelado.
São períodos em que as notícias cotidianas nos deixam tristes.
De uma certa forma, tento olhar com esperança. A II Guerra e todos os seus horrores acabaram despertando algumas reações valiosas para que pudéssemos continuar a aventura humana.
Na França, o existencialismo ganhou importância não só com filósofos, Sartre, Simone, mas também artistas como Juliette Greco. Em Frankfurt uma nova escola de pensamento mergulhou não apenas na mente germânica mas produziu conhecimentos universais: Marcuse, Erich Fromm, Adorno, Horkheimer, Habermas ocuparam a cena para reinterpretar a realidade.
Minha esperança é de que possamos sair desse momento com novas idéias, aprendendo um pouco mais sobre os seres humanos, como aprendemos com os descaminhos do povo alemão.
Hitler tinha apoio popular. Guardadas as proporções, Donald Trump também galvaniza o apoio popular. A hostilidade aos estrangeiros se espalha entre pessoas simples que buscam explicações para suas dificuldades.
Sou neto de imigrantes. Sempre pensei nos avós como gente com a mão atrás, na pobreza, e trabalhou arduamente para cavar seu caminho e garantir a sobrevivência. Jamais imaginei que imigrantes fossem perseguidos como criminosos, apenas por buscar uma oportunidade num novo país.
É possível superar essa tendência humana para criar bodes expiatórios? O que é preciso aprender, o que é preciso ensinar para darmos esse passo histórico?
Não tenho respostas para estas questões, sei que foram levantadas em outras épocas e que precisamos viver esse momento trágico mas tentar respondê-la à nossa maneira, em nosso tempo de vida.