CENTRO

Depredam o centro, mas não a memória. Por Antônio Claudio Mariz de Oliveira

Centro de São Paulo…A nossa Praça Clóvis, mais sóbria, consentânea com uma cidade mais austera e sisuda, possuía, tal como a carioca, a dignidade dos logradouros públicos marcados por tradições, frequentadores típicos, prédios que esbanjavam história e tradição.

CENTRO SP
Tribunal de Justiça de São Paulo

PUBLICADO EM “MARIZALHAS”, MIGALHAS, EDIÇÃO DE 11 DE MARÇO DE 2025

Andar pelo centro de São Paulo provoca variadas sensações que atingem o físico, a memória e os sentimentos. Mesmo com a má conservação das suas calçadas, trazendo ao andarilho dificuldades, riscos de tropeções e até quedas; a triste cena dos prédios abandonados; a sujeira instalada; os moradores de rua como reflexo da trágica desigualdade social, um passeio pelas ruas e praças do centro velho faz reviver sentimentos, recordações, saudades, alegria dos tempos idos e vividos, enfim um rosário de amores pela nossa cidade.

Essa viagem ao centro de São Paulo me remete ao exercício da minha advocacia em seu nascedouro, nos idos de 1962, quando comecei a trabalhar com meu pai no escritório da Praça da Sé, nº 399. Era “office Fórum”, até 1969 quando colei grau. Da experiência na advocacia cível, área do meu pai, para a criminal, foi uma transição rápida, pois logo que me formei fui nomeado defensor dativo pelo presidente do 1º Tribunal do Júri, Dr. Edgardo Severo de Albuquerque Maranhão. O primeiro caso criminal me foi indicado pelo já consagrado advogado criminal, José Carlos Dias.

O percurso no tempo vai, portanto, dessa época até alguns anos atrás e traz às minhas lembranças as ruas e os prédios por onde desenvolvi as minhas atividades. O magnífico prédio do TJ/SP que abrigou durante muitos anos os cartórios e as varas criminais; o Fórum João Mendes, com a parte cível e, posteriormente, o Palácio Mauá, para onde foram as varas criminais testemunharam uma época.

Dos prédios ligados ao Direito e à Justiça ainda devem ser citados a Faculdade do Largo de São Francisco; a Ordem dos Advogados ao lado da Catedral; a Associação dos Advogados também no Largo de São Francisco. Algumas livrarias jurídicas se concentravam naquela região: Saraiva, na rua José Bonifácio e posteriormente na Praça João Mendes; Forense, em frente à Faculdade de Direito; Revista dos Tribunais, na rua Conde do Pinhal e inúmeros sebos que também vendiam livros de Direito.

Ainda falando de prédios e lamentando o ímpeto destrutivo provocado pelo desapego à história e à arquitetura da cidade, cito um edifício que não fazia parte do acervo jurídico, mas que teve um significado extraordinário para São Paulo e para os que o conheceram e o frequentaram. Trata-se do chamado Palacete Santa Helena, localizado na Praça da Sé, à direita em direção ao Pátio do Colégio. Foi destruído, junto com todo o quarteirão, para que a Sé e a praça Clóvis Bevilaqua fossem unidas.

Extinguiram a Clóvis do mapa, tal como fizeram com a Praça Onze no Rio de Janeiro. A Praça carioca simbolizava o samba, o seu início e o seu desenvolvimento. Na verdade, era um símbolo do próprio Rio, da sua cultura popular, cultura de raiz que surgiu da junção de outras várias, de origem africana umas, dos morros cariocas outras, das famosas tias que abriam as suas casas para sambistas, capoeiristas, mães e pais de santos e até intelectuais que lá frequentavam.

A nossa Praça Clóvis, mais sóbria, consentânea com uma cidade mais austera e sisuda, possuía, tal como a carioca, a dignidade dos logradouros públicos marcados por tradições, frequentadores típicos, prédios que esbanjavam história e tradição.

O quarteirão da Praça da Sé que foi derrubado abrigava como dito o Palacete Santa Helena, o magnífico Santa Helena, quer pela sua arquitetura, quer pelo que continha: um teatro que se tornou célebre e um cinema. Mas, o principal, lá estavam instalados vários ateliers de pintores que constituíram o chamado Grupo Santa Helena. Rebolo, Volpi, Bonadei, Clóvis Graciano, Penacchi, Zanini e outros que transformaram o Santa num símbolo das artes plásticas de São Paulo.

Devo registar que o Palacete me traz gratas recordações, especificamente do seu cinema, cujo nome era Cine Mundi. Por que a sua importância? Ele tinha sessões às 9h. Isso nos levava a gazetear as aulas para assistir aos filmes matinais. Trocávamos as salas de aula pelas do cinema. E lá aprendíamos sempre alguma coisa. Puseram o Santo Helena e a sua memória abaixo.

Ainda trazendo o Rio para esse singelo escrito, a ação predatória do administrador carioca pôs abaixo o magnifico Palácio Monroe, que foi sede do Senado Federal. Uma magnifica edificação posta em ruinas para que no lugar, tal como em São Paulo, nada permanecesse. Nenhuma edificação, nenhuma estátua, nenhum símbolo, nada. Absolutamente nada.

Esses dois exemplos encontrados em duas das maiores cidades do país mostram um viés destrutivo que conduz nossos administradores urbanos a uma ação de “bota abaixo” que não destrói apenas prédios, mas enterra a memória e o sentimento de amor que cada munícipe tem por sua cidade. Imagino os parisienses vendo ruir a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo em nome sabe-se lá do que…

https://www.migalhas.com.br/coluna/marizalhas/425960/depredam-o-centro-mas-nao-a-memoria

_________

*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Assine a nossa newsletter