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Quando alguns são mais iguais do que os outros. Por Aldo Bizzocchi
Há um dito jocoso, atribuído a George Orwell em seu romance A revolução dos bichos, que diz: “todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros”. Pois nos últimos tempos instalou-se nas sociedades ocidentais uma mentalidade segundo a qual pessoas pertencentes a minorias…
Há um dito jocoso, atribuído a George Orwell em seu romance A revolução dos bichos, que diz: “todos são iguais perante a lei, mas alguns são mais iguais do que os outros”. Pois nos últimos tempos instalou-se nas sociedades ocidentais uma mentalidade segundo a qual pessoas pertencentes a minorias, especialmente os pobres e os negros (que no nosso país estão longe de ser minoria), podem descumprir as leis sem que nada lhes aconteça.
Por exemplo, um grupo de moradores da periferia pode, nos fins de semana, especialmente à noite, fechar uma rua, impedindo o livre trânsito dos cidadãos e cerceando seu direito de ir e vir, para promover um baile funk ou pancadão e pode perturbar o sossego dos moradores da vizinhança e impedi-los de dormir — sem falar no tráfico e consumo de drogas, aliciamento de menores, estímulo à prostituição, presença de veículos roubados, etc. —, tudo isso com o apoio e o aplauso de certos políticos e sem que o poder público possa reprimi-los. Afinal, funk é cultura, certo? Afinal, os jovens da periferia não têm outra forma de lazer, certo? Afinal, a polícia, se tenta fazer cumprir a lei, é truculenta, certo?
Se um branco ofende um negro com base na cor de sua pele, pode ser preso sem direito a fiança ou prescrição de sua pena, mas se um negro ofende um branco com base na cor de sua pele, nada acontece, afinal não existe racismo reverso, certo? Pelo menos, esse é o entendimento do nosso Poder Judiciário.
Vivemos numa sociedade em que algumas pessoas podem aceder a vagas na universidade ou no serviço público sem ter mérito suficiente, passando assim à frente de outras pessoas mais qualificadas, apenas pela cor da pele ou pela situação socioeconômica. Vivemos numa sociedade em que alguns grupos têm certos privilégios, como se outros grupos lhes devessem algo, e esses privilégios, mesmo quando injustos ou ainda que um dia não sejam mais necessários, jamais serão revogados, pois “conquistas sociais” não podem retroceder, certo?
Quando certa mentalidade vigente, ainda mais tornada lei, divide os cidadãos entre “nós” e “eles” e estabelece que alguns são mais iguais do que os outros, é o início do esgarçamento do tecido social, com toda sorte de ressentimentos, que é a raiz dos discursos de ódio, da polarização política e do rompimento das relações entre amigos, entre familiares, entre colegas de trabalho, e ao resultado de tudo isso estamos assistindo hoje no país e no mundo.
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Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.
Autor, pela Editora GrupoAlmedina, de “Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”
Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br