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Começou assim. Por Antonio Contente
Começou assim…Súbito explode um clarão à sua frente; após o dissipar da fumaça, com cheiro forte de enxofre, surge, diante do rapazola, um homem de vermelho com rabo; na testa, chifrinhos…
Contam que aquele hoje famoso homem público com atuação que causa espanto até em quem não se espanta com nada, quando adolescente ia, certo fim de tarde, andando por estradinha de terra próxima ao sítio em que morava, nas brenhas do Nordeste brasileiro. Súbito explode um clarão à sua frente; após o dissipar da fumaça, com cheiro forte de enxofre, surge, diante do rapazola, um homem de vermelho com rabo; na testa, chifrinhos.
— Onde você vai, meu filho? — A risonha aparição pergunta.
— Bom – o menino vacila – estou indo à venda do seo Wagnão.
— Comprar guloseima?
— Não, procurar algum servicinho. Sou muito pobre…
— Ora – o homem sorri – não se preocupe com isso.
— Com o que?
— Com ser pobre.
— Mas é ruim não ter nada… – O fedelho baixa os olhos.
— Pode até ser – o personagem concorda – mas, hoje, estou aqui para mudar seu destino.
— E como o senhor sabe que mudará meu destino?
— Porque eu sei tudo. Tudo o que acontece, aqui e além.
— Mas só quem sabe tudo é De…
— Não pronuncie esse nome!! – A aparição berra, recuando, com duas labaredas a escapar dos cantos da boca.
— Mas então eu não serei pobre? Realizarei meu sonho?
— Pode ter certeza. Estou aqui para isso.
— Parece que estou vendo – os olhos do adolescente brilham – parece que estou me vendo no volante de um caminhão. Meu sonho é ser caminhoneiro.
— Ser motorista de caminhão é o seu sonho? – O horrendo ser solta lúgubre gargalhada — Sinto muito decepcioná-lo.
— Eu não serei caminhoneiro? – O tom é de quase soluço.
— Não. Reservei outras coisas para você.
— Mas tudo que eu quero é…
— É o que você pensa – nova interrupção – você será um homem poderoso.
— Mais poderoso do que um motorista de caminhão? Ele que pode ir pra onde quiser? Ele que pode, usando as mãos, tocar a linda buzina que parece corneta?
— Suas mãos estão sendo preparadas para tirar outras coisas, meu filho, não sons vagabundos de buzinas.
— Então o senhor é De…
— Pare!! Não pronuncie esse nome, já ordenei! – Pipoca um trovão e um raio risca o céu.
— Bom, o senhor vai me ajudar, não é? Mas se eu não for motorista de caminhão…
— Caminhão, meu filho, é apenas o veículo que te levará.
— Quando?
— Quando menos você esperar. Você irá pra longe, para uma importante cidade do interior de São Paulo, serás rico e famoso. Mais rico do que o dono da maior fazenda aqui da região, mais rico do que o prefeito da cidadezinha ali perto. Ao chegar à venda do seo Wagnão, você começará nova vida.
É então que o sujeito de unhas negras, dentes com caninos pontudos, rabo e chifrinhos some no ar, enquanto o fedelho, agora assustado, corre para o seu destino. Mal entra no armazenzinho escuta a frase de um homem numa roda junto balcão; ele dizia estar aflito para comprar uma lebre.
— Eu tenho o que o senhor quer! – O moleque se surpreende com o som da própria voz, como se não tivesse sido ele a falar.
O sujeito, que o conhecia de vista, passou a mão nas costas do carinha, concordando, até, em pagar adiantado. Pediu que a encomenda fosse entregue em sua casa.
Assim, à noite, ao chegar para o jantar, a esposa apontou o saco que haviam deixado. O fulano logo concluiu que só podia ser o animal que comprara. Pegou a coisa, abriu com cuidado, para dar um berro:
— Mas o que é isso? Comprei daquele fedelho uma lebre e o diabinho me trouxe um gato?
Saiu rápido em busca do esperto que, contudo, de carona na boléia de um caminhão já se encontrava a caminho da próspera e charmosa cidade do interior paulista. Onde cresceu e se tornou político famoso. Tudo graças à sua infalível tática, aperfeiçoada em muitos anos, principalmente depois que, como político, seguiu, com fulminante sucesso, a vender gato por lebre ou, dependendo das circunstâncias, picanha; porém entregando jerimum. Mas de forma que causaria espanto até mesmo ao homem com chifres, seu eterno protetor, que lhe apareceu naquele distante dia, na estrada…
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.