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Quem me dera. Por Antonio Contente
Quem me dera! …pudesse eu ter de volta uma daquelas tardes lavadas e purificadas por apaziguante chuva. Plena do aroma dos galhos e das folhas úmidas a escorrer para a tepidez dos lençóis…
Ah, pudesse eu ter de volta, uma, apenas uma que fosse, daquelas tardes. Em que o céu, mais do que o invólucro azul desta terra nem sempre da mesma cor, envolvia o sagrado instante do aguardar. Tardes e esperas tantas vezes se confundem, no correr da realidade e no envolvimento do que elas abrigam de sonhos. E é tão bom, nelas, sentir o escorrer dos momentos, como carícia ao respirar da pele na sagração do deslizar do amor. Que logo atravessará a porta pedindo o cerrar da janela para a contenção de todos os suspiros. E para impedir que se dissolvam antes de serem incorporados pela luz, pelas sombras, pelo tom de apaziguamento do instante. Pois os momentos que cobrem os atos de ternura é que criam a gênese das eternidades.
Ah, pudesse eu ter de volta uma daquelas tardes lavadas e purificadas por apaziguante chuva. Plena do aroma dos galhos e das folhas úmidas a escorrer para a tepidez dos lençóis; mas, sobretudo, a se entranhar nos poros dos braços e do colo da mulher amada. Para, enfim, entrar no meu corpo através da dádiva dos cabelos; a me cobrir o rosto para o lento respirar do perfume elaborado na alquimia das plantas e das flores.
Ah, pudesse eu ter de volta uma daquelas tardes em que, após o amor nunca saciado, mas em repouso, pudesse escutar a inscrição de cada nota do ressonar da moça na partitura afeita às Sonatas; mas recebendo, ali, as notas musicais da lenta dádiva do chopiniano Noturno do seu sono e do seu sonho.
Ah, pudesse eu ter de volta uma daquelas tardes em que, no caminhar até a chegada do crepúsculo, pudéssemos, debruçados na janela, esperar o lento chegar da noite. E ali, de olhos fixos no céu, esperar o brilho do primeiro astro, para a ele fazer os tradicionais pedidos. E depois, com a escuridão já densa, poder abrir nossas mãos em concha ao apenas aparente vazio do espaço; e, com elas, colher inumeráveis punhados de poeira de estrelas. Para, dispersados sobre a cama, marcar de brilho os instantes do ato de amor seguinte. Que assim melhor levaria ao murmurante canto longínquo do galo da madrugada. A anunciar que a aurora chegava para nos preparar aos novos encantos que estariam à nossa espera depois que o sol dobrasse a primeira parte do dia.
Ah, pudesse eu ter de volta uma daquelas tardes para o navegar no mar imenso de tudo que sempre foste. Anunciação de ondas apaziguadas, cristas alvas a coroar cada uma delas; como se pedacinhos de nuvens fossem a cair do céu para prolongar teus inumeráveis instantes de beleza. Distâncias de horizontes abertos, acenos de praias e montanhas, caminhos entre dunas sobre as quais, em tantas tardes, segui teus passos; pois sempre te soube guiada pela estrela errante que nunca deixou de orientar os rumos do pastor teu guia; que mostra o roteiro das brisas e canções com seu cajado feito com retalhos do suspirar das luzes das manhãs.
Ah, pudesse eu ter de volta uma daquelas tardes para te olhar, simplesmente. Para acompanhar teus rumores pela casa, teus gestos no jardim a mexer nos canteiros, teu debulhar de entregas aos passarinhos que vinham pousar sobre o muro a fim de iluminar seus olhos alados com os brilhos dos teus; tão terrenos, mas com tanto alcance de infinito.
Ah, pudesse eu ter de volta uma daquelas tardes em que o catar frutinhas à sombra das amoreiras era muito mais o aprendizado do caminhar sobre as relvas. A descoberta de mundos desconhecidos entre os troncos das árvores da praça, marcados por caminhos só nossos; até chegar a um por nós implantado jardim, cuja realidade tinha cor, aroma, cores das belezas do impossível.
Finalmente, como queria ter de volta uma daquelas tardes em que ficou como espécie de oração a crença na letra de uma antiga canção em que o apaixonado só aprendeu que a semana tem mais de sete dias pelo prolongamento dos encantos da amada; cuja presença não podia ser trocada por nada, dado que foi por tê-la conhecido que ele passou a existir. E, por fim, redescobrir que as nossas tardes, qualquer que fosse o tempo e qualquer que fosse o mês, eram sempre seguidas por noites nas quais nunca deixava de se esparramar sobre nós um grande, suave, prateado, mágico, santo, sagrado e indescritível luar. Plenilúnio, palavra linda de versos com métricas e rimas d’outrora; que, infelizmente, quase ninguém escreve mais…
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.