
De janelas e domingos. Por Antonio Contente
Janelas…Esta janela é a bola de cristal na qual vejo bons momentos sempre, justamente os que apaziguam e curam. Lembrem que o primeiro dia do presente mês poderia ter sido um domingo…
De sete em sete dias, impreterivelmente, você abre sua janela, pela manhã, e dá de cara com um domingo. Isso, por si só, já oferece perspectiva de que, além da luz que o toma, sempre, mesmo em dias nublados, estará diante de seus olhos algum lindo cenário. Uma das novelas mais célebres de E. M. Forster se passa parte em Florença, e tem, no começo, cena emblemática. É quando as personagens inglesas que chegam à cidade italiana fazem questão de que na pousada em que ficariam fossem agraciadas com um “Room With a View”; “quarto com paisagem”, o nome, aliás, da obra. É disso que muitas vezes lembro quando, a cada domingo, como ontem, abro janelas, em qualquer lugar que seja, e sou tomado por uma bela composição; se não real, imaginária.
Nesta Chácara da Barra campineira onde me abrigo, por exemplo, constato, quatro vezes a cada mês, a supremacia dos domingos por ter invariavelmente, diante dos meus parcos olhos, verdejante goiabeira. Que também invariavelmente se transfigura a cada semana, com variações de luz e sombras sobre folhas e galhos; isso sem falar do ágil movimento dos passarinhos do bairro, nunca, jamais, em tempo algum os mesmos, mesmo os mesmos sendo. Por meados do mês passado escancaro a domingueira janela e o primeiro bago de chuva logo bateu em minha mão. Pronto, ali estava aconchegante manhã, resposta acabada e pura ao que muitas vezes disse a mim mesmo desde a chegada de alguns dias de estiagem: “Posso até molhar com o esguicho, mas do que esta goiabeira precisa é de um bom e velho pampeiro”… De fato, logo se exibia a íntima árvore, mais verde com a chuvinha, mais ampla com a cumplicidade dos abraços úmidos das heras do muro, do tempo baço, e, principalmente, do repousante encantamento da minha hora.
Não há como não ver, nos domingos sobre os quais abro esta janela, como é vário, no real ou nas ilusões, o que me mostra. São restos da canção da aurora que passou sem brancas nuvens, deixando sinais na relva e nas folhas de plantinhas que florescem o tempo inteiro. Escorre, sobre o manto de ampla trepadeira, o tom pouco líquido do ar que a proximidade do Outono torna tão seco. Não voam, pela manhã, as corujas. Porém como sei de um casal que vive num buraco na parte de cima da rua, vejo, ao cintilar do sol, os rastros dos vôos que o pássaro noturno deixou diante da janela, ele que é condutor alado de um dos itens das vidas que as noites abrigam. Há uma clave de Sol pra violino, outra de Fá para piano à espera do compositor que escreverá as sinfonias latentes. E de longe chegam recados do que me cerca e liberta. Algo me diz do verde das amoreiras na Praça dos Pássaros, que é como chamo a área que existe acima da Jesuino Marcondes Machado, parte da Chácara da Barra. Trafega, na rota que passa pela minha janela, robusto bem-te-vi tão presente em várias crônicas, pois é emissário do bom tempo após as grandes chuvas. Junto com ele as rolinhas que, quando falta o que catar nas calçadas da rua Piedade, vêm aqui pra perto da esquina, onde já houve um bar, apanhar as quirelas de pão que alguma santa mão ao chão ainda deixa escapar.
Esta janela é a bola de cristal na qual vejo bons momentos sempre, justamente os que apaziguam e curam. Lembrem que o primeiro dia do presente mês poderia ter sido um domingo. E no ar que me tomou, ao abrir a janela então, estavam escritas todas as belas vivências que as quatro semanas propiciam. Bem ao contrário do que muitos pensam e outros pregam para meter medo aos desavisados que não conseguem domar seus espantos.
Num agosto Getúlio pode ter estourado o peito, Jânio pode ter renunciado, e até o 11 de setembro pode ter feito despencar as Torres Gêmeas pela proximidade ao fim do período anterior. Mas vi diante da janela que se abriu pra mim no recente dia 1, que estava a entrar no mês dos acontecimentos francamente azuis, como aniversário de mãe e irmãos que já se foram, mais o de amadas mulheres donas de encantos que o passar do tempo e a distância tornam mais nítidos e resignadamente indispensáveis. Bendita janela que até pode ser meu Óculos de Pangloss sobre o tempo e o vento. Afinal, um céu azul sem nuvens me mostra papagaios de papéis coloridos resgatados da longínqua infância em beira de rio, e tufos de orquídeas como só existem nos Olimpos de minha propriedade. Em Campinas tenho o que as personagens de E. M. Forster pediram. Meu quarto, na Chácara da Barra, tem diante dele paisagens, e elas que aqui gorjeiam, gorjeiam como em outros certos lugares nos quais a vida me põe. Basta que, diante da janela, se corporifique um sagrado e amplo domingo. Bom dia.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
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