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Uma PEC e suas nefandas consequências. Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
PEC nefanda… Se o aborto é atentatório à moral, à ética e a preceitos religiosos, uma vida desprovida de condições mínimas de dignidade é imoral e atentatória a preceitos humanitários
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO ESTADÃO, ESPAÇO ABERTO, EDIÇÃO DE 7 DE FEVEREIRO DE 2025
O projeto de inclusão na Constituição federal da declaração de que a vida se inicia com a concepção está gerando interpretações precipitadas, especialmente por parte daqueles que combatem o aborto e o fazem com tal ardor que beira o fanatismo. Não emprestam nenhuma atenção a inúmeras ponderações de ordem filosófica, jurídica e especialmente social que circulam em torno da aflitiva questão.
Uma dessas interpretações açodadas e, portanto, irrefletidas refere-se às hipóteses em que a cessação da gravidez é aceita pelo ordenamento jurídico. Desde 1940, com a edição do Código Penal, é legítima e legal a interrupção gestacional quando não houver outro meio para salvar a vida da mãe ou na hipótese de gravidez decorrente de estupro. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em 2012 ampliou esse rol, ao decidir que impedir o nascimento de feto anencéfalo não constitui a figura típica do aborto.
Aqueles que se dizem defensores intransigentes da vida afirmam que a partir da aprovação da proposta de emenda à Constituição (PEC) as permissões constantes do Código Penal e a própria decisão do Supremo não mais estarão em vigor. As causas de isenção de crime passarão a ser letra-morta.
Assim, são defensores do nascimento de um ser fadado ao perecimento logo após o seu nascimento, no caso de anencéfalo. Ademais, aceitam a morte da parturiente em benefício da vida do nascituro. Por outro lado, o feto fruto de um estupro terá que progredir até nascer, estando destinado a uma vida possivelmente desprovida do amor filial e da aceitação social. Repelem cada uma das causas excludentes de criminalidade expostas no Código Penal há 85 anos. Um retrocesso decorrente de um conservadorismo obtuso, predador, que representa a negação do humanismo como valor básico de sustentação de uma civilização baseada no respeito e no amor ao próximo.
Essa miopia, portanto, revela uma cegueira humana e social que leva os “paladinos da vida” a um irrealismo e a uma insensibilidade que provocam indignação e revolta. A sua obstinada posição impede que atentem para fatores imponderáveis, alguns, e conhecidos e previsíveis outros que colocam a maternidade como um prenúncio de padecimentos para a mãe e para o filho.
Quando a gestante carente de recursos opta pelo aborto clandestino, ela está colocando em risco a sua vida, em razão das condições precárias, insalubres, verdadeiramente mórbidas em que o ato irá ser realizado. A proibição do aborto, que pretende preservar a vida, paradoxalmente está pondo em risco a vida da mãe, e não protegendo a do nascituro.
Os seus ferrenhos adversários não possuem coerência em suas posições. Em sua maioria são favoráveis à adoção da pena de morte, bem como aplaudem as ações violentas da polícia, mesmo que levem a consequências letais. Vê-se, pois, que seu fanatismo em prol da vida é seletivo. Cessação da gravidez pelo aborto, não, mas extinção da vida por meio de execuções é admissível.
A triste realidade é que a pobreza e a falta de condições para uma existência com um mínimo de dignidade retiram de milhares de mulheres brasileiras a suprema felicidade de ser mãe.
Se o aborto é atentatório à moral, à ética e a preceitos religiosos, uma vida desprovida de condições mínimas de dignidade, amparo material e proteção social é imoral e atentatória a preceitos humanitários. Especialmente aquela gerada nas condições expostas pela lei penal como justificadoras do aborto.
Voltando ao tema da proposta constitucional, dizer que a vida tem início com a concepção em absoluto significa estarem revogadas as hipóteses permissivas do aborto. Diante do entendimento contrário também se afastará do ordenamento jurídico a exclusão de ilicitude do homicídio praticado em legítima defesa.
Explico: ao entender-se que o aborto constitui crime pois a vida tem início desde a concepção, afastando as causas de exclusão do crime, o mesmo se dará com a legítima defesa que não mais poderá justificar o homicídio mesmo que praticado de acordo com os pressupostos previstos em lei. O feto abortado, assim como a vítima do homicídio, são seres viventes desde sua concepção. Se forem afastadas as causas legais do aborto porque a vida tem início com a concepção deve-se excluir a legítima defesa como justificativa do homicídio, pela mesma razão. Se as circunstâncias que justificam o aborto não mais excluem o crime, também aquelas que caracterizam a legítima defesa não devem perdurar, pois a vida tem início com a concepção.
Deve-se observar que o legislador penal, ciente de que a conduta humana não é linear nem imutável, pois varia de acordo com comportamentos impostos pela própria vida, houve por bem flexibilizar a lei penal, adaptando-a a eventos imprevisíveis, retirando o originário caráter delituoso dessas condutas.
O aborto tem as suas raízes basicamente assentadas em situações humanas algumas, e sociais outras, que não podem ser olvidadas quando se discute a sua criminalização, principalmente quando ela decorre de interpretações oblíquas, tendenciosas e que trazem consequências para o ordenamento jurídico penal, atingindo institutos que têm origem na própria natureza humana, como o da legítima defesa.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.