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Castrando os nossos futuros “Elon Musk”. Por Aylê-Salassié Quintão
Castrando os nossos futuros “Elon Musk”… Será que essa lei vai inibir os Elon Musk que estão dentro de cada adolescente em idade escolar? A cultura livresca como panaceia da educação, vai sofrer um impacto grande…
O uso do celular em sala de aula remete a situações divertidas, intrigantes e até transgressoras. Ficaram registradas no histórico da vida docente. Eram turmas de 40 a 50 estudantes. Uma aluna transmitia minhas aulas para fora da sala, não sei para onde, nem para quem, descobri tarde. Um aluno negociava drogas no campus de dentro da sala de aula, sem eu perceber. Duas estudantes teciam comentários jocosos pelo celular, acredito que sobre a aula. Uma outra fotografava tudo que escrevia no quadro. Em termos de socialidade, entretanto, era um belo grupo. Não sei se uma rede.
Mas, aqueles comportamentos estranhos não propriamente indisciplinados, prejudicavam, sim, o desenvolvimento da aula. Tirava a atenção de alguns e, às vezes, atravessava o conteúdo. Relatava para a Diretoria do Curso, já que não conseguia administrar ali o súbito aparecimento de tecnologias e aplicativos e uma criatividade latente. Na sala dos Professores, meus relatos viravam piadas, embora todos vivenciassem o mesmo problema.
Na verdade, não queria interromper aquele percurso dos estudantes em direção às inovações tecnológicas. Nem todos eram desatentos ou davam prioridade ao celular. Escrevera um livro “Rupturas” (Ed. Otimismo, 2014), e tinha presente a noção de que algo diferente estava acontecendo no campo da educação. Havia estudantes altamente interessados no conteúdo das disciplinas e tornaram-se profissionais qualificados. Mas, poucos liam os livros recomendados. A bibliografias dos trabalhos acadêmicos vinham cheias de referências digitais.
Estou falando de universitários, maiores, de pessoas já no final da adolescência, quase adultos, preparando-se para assumir uma carreira profissional. Não tenho experiência de sala de aula com crianças e pré-adolescentes. Aliás, no curso de Licenciatura em Educação fui obrigado a dar aulas para uma turma de primeiro grau. Não me saí mal, mas não havia celular, nem mesmo orelhão por perto.
Mas, atento ao desempenho dos alunos, vivi uma experiência pedagógica muito curiosa, em que o celular era um importante protagonista. Eu e um outro professor, Paulo Trindade, propusemos projetos de cobertura jornalística, presencial, dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos com estudantes. Ouvimos os Comitês Olímpicos, e abrimos inscrições para um número “X” de vagas. Foram mais de 200 inscritos, num curso de Comunicação com cerca de 1.400 alunos matriculados. Esses projetos previam, na preparação da equipe, uma rotina de estudos e treinamentos especializados envolvendo conhecimento das diferentes modalidades esportivas, da cultura do país onde os jogos seriam realizados, de línguas (inglês, grego e mandarim) e o desenvolvimento de habilidades tecnológicas.
Os preparativos se estenderam por um ano para os Jogos de Atenas, de Pequim e de Londres. O uso de tecnologias inovadoras foi amplo, e chegamos a até transmissões holográficas. Mas, daqueles 250 inscritos, média para cada Olímpiada, sobraram apenas 13 a 16 estudantes. Daqueles “bambambãs” tecnológicos em sala de aula não sobrou um. Ficamos assustados. Os sinais era de que havia uma ruptura mesmo no uso das tecnologias educacionais e profissionais. Quando retornamos, aquelas câmeras de vídeo Panasonic pesadas foram todas para o depósito de descartáveis. Gravadores e máquinas fotográficas também.
Depois da experiência de Atenas (2004), avançamos muito. O celular chegara, e virou uma extensão do corpo e da cultura de toda uma geração. Nas minhas aulas não faltavam estudantes que, consultando o celular, corrigiam ou completavam as interpretações que dava aos fatos. Cheguei a fazer experiência de um debate silencioso aberto de conteúdo digital. Aliás, o curioso é que pessoas que recebiam minhas aulas, transmitidas por algum estudante, via celular, davam palpite sobre o tema em discussão em sala. Os cursos online já estavam começando. Encontrei aluno da minha Universidade lá na Cabeça do Cachorro, em São Gabriel da Cachoeira, inclusive índios.
Confesso que fico em cima do muro, quando o assunto é celular em sala de aula. A Lei nº 15.100/2025, que restringe o uso de celulares nas escolas, já está em vigor. Cabe a cada rede de ensino e escolas, públicas e privadas, definirem suas próprias estratégias de sua implementação para o início das aulas que, efetivamente, ocorrerá depois do carnaval. Complicadíssimo. O professor parece que terá dois papéis: um pedagógico, de ministrar a aula, e outro, meio policialesco, destinado a coibir a prática transgressora: um bedel. Assim, teremos um corpo docente quase militarizado: uma milícia educacional.
São muitas as tecnologias utilizadas em sala de aula: lousa digital, computadores, tablets, aplicativos, softwares, celulares mesmo de vários gerações, realidade virtual e aumentada. Tudo isso pode funcionar como canal de suporte entre professores, sim, mas também entre estudantes. Os teóricos das escolas e métodos pedagógicos vão sofrer para configurar novas metodologias para a educação. Acredito mesmo que vai demorar até tudo isso dar certo. O Ministério da Educação editou um Manual de Orientação Digital. A regulamentação com repressão, ou a orientação como domesticação não vai resolver sem um modelo pedagógico que inclua as plataformas digitais, ChatGPT ou IA.
Diante desse cenário, fico me perguntando: Será que essa lei vai inibir os Elon Musk que estão dentro de cada adolescente em idade escolar? A cultura livresca como panaceia da educação, vai sofrer um impacto grande. No velho CIEM – Centro Integrado de Ensino Médio, da Universidade de Brasília, o professor de Física reuniu em torno de si um grupo de estudantes de 2º grau para uma experiência de construção, em laboratório, e lançamento de um foguete. E o fizeram. Não deu muito certo. Implodiu logo nos primeiros mil metros. Nosso projeto de Cobertura Jornalística Multimídia de Jogos Olímpicos realizadas, pela primeira vez com estudantes, surgiu de uma brincadeira com celular, em sala de aula, na Universidade Católica de Brasília. E deu certo. Atravessamos o mundo com nossos estudantes.
Retornaram desprovincializados, e cheios de celulares de última geração.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Consultor de projetos sociais | Consultor da Catalytica Empreendimentos e Inovações Sociais. Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “AMERICANIDADE”, “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018