Precisamos falar sobre morte. Por Paulo Renato Coelho Netto
Falar sobre a morte…Aprender a lidar com o luto, a burca de chumbo da cabeça aos pés que encobre os olhos…
Curiosamente, o primeiro ser que vi sem vida foi um jacaré. Literalmente na porta de casa, com a enorme boca aberta com a providencial ajuda de um galho maciço de árvore. Chegou lá levado por um amigo do meu pai, que voltava de uma pescaria e tinha um humor bastante peculiar. Era o fim da década de 1960. Eu tinha menos de cinco anos e o homem ainda não havia chegado à Lua.
Poucos anos depois, morando em um apartamento, acordo tarde da noite com a porta batendo com tudo no aparador e uma voz praticamente gritando: “Acorda que seu pai morreu”. Naquele exato momento acabou a minha infância, com data marcada, mês e ano: cinco de maio de 1976. Tinha onze anos de idade.
A Lindaura, que trouxe a notícia, trabalhava em casa há muitos anos. A mesma moça que um dia me ofereceu melancia e que me ouviu perguntar de volta “Com caroço ou sem caroço?”, me catapultou atordoado, com uma frase curta, para a vida adulta. Lá fora, as ruas eram iluminadas timidamente com lâmpadas de mercúrio.
Mais tarde, mortos foram brotando à minha volta com uma infertilidade incrível. Tios e tias, quase todos infartados com a sutileza de um vulcão que joga suas lavas cinzas sobre a relva úmida e verde. Morreram como dominós. Um caía e derrubava o outro na sequência.
Quando a minha avó faleceu, meu pai foi a primeira pessoa que vi chorar por alguém que havia morrido. O incomparável choro que determina o nunca mais. Tentava fazer a barba em frente ao espelho coberto com vapor do chuveiro.
Diante dele, não sabia se o molhado na sua face eram gotas remanescentes do banho ou lágrimas. No mesmo momento, escutei a voz da minha mãe dizendo: “Deixa ele, filho”. Em outras palavras, ela ensinava que diante da morte ninguém pode fazer nada. Em certos casos, nem mesmo o tempo.
Tive amigos adolescentes que morreram de causas naturais ou não. Um deles eu gostava de tal forma que mais de quarenta e cinco anos depois ainda sinto a sua falta.
Adulto, enterrei outros tantos. Colegas de trabalho, amigas, vizinhos, pais, mães de amigos e meus familiares que me sepultaram vivo antes mesmo que eu fosse enterrá-los.
Guardei silêncio aos que se foram e não pude me fazer presente por estar mais longe do que gostaria. Impotência e dor.
Curiosamente, assim como o jacaré da minha infância, com o tempo muita gente viva que julgava para sempre morreu aos poucos, enquanto outras entraram feito fachos de luz para marcar a minha existência. Ouço nitidamente a voz de cada um que se foi. Converso com eles. Alguns peço para me deixar em paz. Com outros, me divirto.
A morte é uma questão cultural. À sua maneira, cada um de nós encara com seu próprio kuarup. Tema coberto de tabu e aversão em sua grande maioria. Não falamos a respeito.
Poderíamos conversar com as crianças sobre morrer, até para que continuem vivendo razoavelmente em paz se alguém, de forma abrupta, escancarar a porta do quarto com uma realidade inevitável e nunca abordada.
Aprender a lidar com o luto, a burca de chumbo da cabeça aos pés que encobre os olhos.
Quem sabe todo o entendimento para viver uma vida plena tenha origem justamente sobre o que mais evitamos reconhecer.
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Paulo Renato Coelho Netto – é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.