ESCOLA FLORESTA

Quando caem coisas do céu. Por Antonio Contente

… pegou as mãos do meu amigo e cobriu de beijos. Fazia tempo, muito tempo que eu não via uma pessoa chorar de alegria. – Caiu do céu para nós…

Quando caem coisas do céu

         Nas minhas temporadas de Robinson Crusoé na ilha no Delta do rio Amazonas, raramente recebo visitas. É que para chegar onde me escondo o visitante precisa cumprir certa liturgia nem sempre confortável. Ou seja, para a, se assim podemos chamar, viagem, tem que alugar algum barquinho em Belém. E a travessia, que demora cerca de cinco horas mesmo em embarcação veloz, pode oferecer algumas surpresas. Como no meio da baía pintar súbito temporal, o que não é raro no grande delta. Então de repente batem ondas quase tão grandes quanto as de mar, alimento para os medos dos passageiros e desafio aos em geral experientes pilotos. De outro lado, se o amigo que me busca for rico, pode chegar em sofisticada lancha própria. Mas mesmo eles temem, especialmente na estação das chuvas, o bater das águas picadas.

         Assim, naquela manhã, já faz mais de ano, eu estava mexendo nuns canteiros de rosas junto ao pomar, quando ouvi o ronco. Levantei a cabeça em direção à baía, saquei meu binóculo que detecta até as crateras da lua e olhei. Deu, inclusive, para ler o nome do flutuante, no alto da popa: Gaivota Selvagem.

         — É o Saul! – Gritei para seu Pluéricles, o caseiro.

         Logo a embarcação linda, branca, soberba, encosta no meu exíguo trapiche. E o dono desembarca na estiva de madeira, com robusto tripulante ao lado carregando alguns pacotes. Como um Rei Mago, o recém-chegado trazia não incenso ou mirra, sim vinhos, queijos e uísques. Nada mau para presentear um ermitão solitário.

         Porém o importante, e eis a razão desta crônica, é que na linda manhã saímos na lancha para percorrer os arredores. Num dos paranás entre duas ilhas, avistamos montarias (pequenas embarcações), impulsionadas a remos, lotadas com crianças. Paramos ao lado de uma delas e ficamos sabendo que os meninos e meninas iam para a escola. O que foi uma grande surpresa até para mim, que roda por aqui faz mais de 20 anos. Resolvemos buscar o local onde os juvenzinhos aprendiam coisas.

         Foi assim que conhecemos dona Elisa, linda cabocla de uns 50 anos. Com belíssima história que se resume ao seguinte: casada com o dono de pequena propriedade na beira do rio, tendo sido professora em Belém, resolveu fazer uma escola para ensinar algo aos filhos dos ribeirinhos das redondezas. Na sala de aulas que montou em sua própria casa, contava com cadeiras e carteiras improvisadas, idem o quadro negro. Diante de nossas perguntas se tinha alguma ajuda oficial, apenas sorriu. Operava tudo com seus parcos recursos (o marido comercializa, do outro lado da baía, na capital, açaí, pupunha, bacaba, produtos da terra) e, digamos, amor à arte. Já fazia isso há alguns anos, conseguindo, neste tempo, alfabetizar inúmeras crianças e até alguns adultos. Os livros que usava estavam velhos, ensebados. Cadernos e lápis, as maiores carências.

         Ao voltar para a lancha eu e Saul ficamos monossilábicos. Tanto que ao desembarcar no meu casebre, percebi que o visitante não mostrava vontade de permanecer. Após  garfadas apressadas, pegou sua moderna embarcação e se foi.

         Três dias depois, novamente no pomar, escuto o ronco e logo vejo a bela Gaivota Selvagem. Da qual saltou um agilíssimo e animado Saul. Que me arrastou para bordo. No convés, várias caixas de papelão. Ao abrir uma delas, avistei montão de cadernos e resmas de papel sulfite. As outras armazenavam centenas de lápis, canetas esferográficas, borrachas, apontadores, livros didáticos para o ensino etc. Complementando, uma enorme lousa.

         Quando, hora e meia depois, na frente da casinha de dona Elisa os tripulantes desembarcaram a carga, a professora se apoiou num tronco, acho que para não cair. E à medida que ia vendo o que chegava, perdia o fôlego. Ao se aproximar de mim com jeito de agradecer, apontei para Saul. Ela pegou as mãos do meu amigo e cobriu de beijos. Fazia tempo, muito tempo que eu não via uma pessoa chorar de alegria.

         — Caiu do céu para nós… — murmurou a mestra.

         Isso tudo se deu em menos de vinte minutos. Imediatamente voltamos à lancha e zarpamos para o meu casebre. Ali Saul Siqueira, um homem bom (adotou a escolhinha, hoje lá não falta nada, inclusive adubada merenda diária pra criançada), me garantiu, sorriso luminoso no rosto:

         — Agora sim, vamos ter um almoço dos deuses.

         E tivemos…

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

 

 

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