Metempsicose. Por Eduardo Affonso
…Dali veio, como uma iluminação, a tese da metempsicose das formigas (eu já gostava de palavras difíceis, e devia ser a única criança de todo o Noroeste de Minas a conhecer – e usar – a palavra metempsicose)…
Publicado originalmente no blog do autor, https://tianeysa.wordpress.com/, em 30 de janeiro de 2025
Esmaguei, sem querer, uma formiga aqui na minha mesa de trabalho. Dessas formiguinhas miúdas que a gente só não confunde com um cisco porque cisco não anda freneticamente nem agita as antenas.
Nesta época do ano, hordas de formigas invadem o apartamento, e se materializam onde quer que haja um restinho de comida. Um copo de suco ou uma cumbuca de sorvete deixados de lado por alguns minutos são mais que motivo para uma reive.
Eu, no máximo, as assopro quando resolvem escalar o teclado ou excursionam pelo celular. Mas ontem esmaguei uma, involuntariamente.
Só me dei conta disso quando reparei que um pontinho negro na superfície branca da mesa – e que não parecia ser resto de nada – tinha virado referência para as formigas que passavam.
Elas se se desviavam do caminho, se aproximavam agitadas, ensaiavam ir embora, voltavam, faziam coisas invisíveis e, por fim, seguiam seu destino. Até a próxima formiga surgir no horizonte, entre o monitor e o modem, sob a impressora, por trás da agenda, e repetir a cena.
Imaginei que as formigas sentissem o cheiro da companheira morta. Que seu corpo se transformasse numa espécie de alerta olfativo de perigo. Cuidado, redobre a atenção; homem mau e desastrado nas imediações.
O que me impressionou não foi virem todas (ok, nem todas: algumas) acudir a desafortunada, mas o quanto hesitavam antes de deixá-la para trás. Se formigas souberem o que é esperança, eu diria que a exercitavam ali. Se souberem o que é desespero, também.
Por fim, aproveitando um momento em que o velório fora interrompido por falta de quórum, resgatei o cisco imóvel e passei um guardanapo no local, apagando de vez a memória da sua existência.
Tenho essa relação de afeto com as formigas – talvez para compensar a falta de empatia por pernilongos, mosquitos e muriçocas. Insetos sociais, de certa forma, me comovem – por seu senso de dever, por sua privação do livre arbítrio, pela frequência com que sua existência se resume a viver pelo formigueiro (ou pela colmeia) e morrer sem razão.
Quando garoto, passava horas acompanhando o vai-e-vem das formigas no quintal. Eram imensas – e eu enxergava bem melhor – de modo que dava para ver nitidamente como as antenas se tocavam cada vez que uma formiga cruzava com outra.
Talvez se cumprimentassem. Talvez fossem cegas e estivessem tateando. Ou, quem sabe (essa foi a teoria que prevaleceu), trocassem de alma.
As formigas não iam e voltavam do formigueiro. Suas almas é que faziam isso. A alma é que era passada de formiga para formiga através das antenas. A alma é que sabia que tinha de cortar a folha, onde estava a folha, que folha servia. A formiga apenas transportava a alma como na procissão o devoto leva o santo no andor.
Eu tinha uns 10 anos quando fiz essa “descoberta”, certamente influenciado por um livro de contos fantásticos que pertencia ao meu avô. Dali veio, como uma iluminação, a tese da metempsicose das formigas (eu já gostava de palavras difíceis, e devia ser a única criança de todo o Noroeste de Minas a conhecer – e usar – a palavra metempsicose).
Menos de uma década depois, abdiquei da minha própria alma, me tornando ateu – mas a das formigas permaneceu intacta. O ritual de ontem, aqui na minha mesa, era isso: o desalento de cada formiga que não conseguia passar adiante seu naco de alma, ou recebê-lo de volta.
Hoje amanheceu nublado, o tempo virou. Não há formiga alguma à vista. Devem estar fazendo o inventário dos mortos – e cerzindo suas almas.
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EDUARDO AFFONSO – Cronista, coordena a “Oficina Literária Eduardo Affonso” e escreve semanalmente no GLOBO e na Veja Rio. Seu blog: https://tianeysa.wordpress.com/
e-mail: eduardo@eduardoaffonso.com