Quintais. Por Antonio Contente
… vamos falar a verdade, nos raros velhos quintais que ainda temos, continuam a morar os elfos, gnomos e duendes que são a melhor expressão das verdades de nossas fantasias.
Sou presa fácil dos encantos dos quintais antigos. Aqueles rodeados por muros cobertos de heras, até porque os delimitados por cercas de estacas nas quais se enroscavam trepadeiras ficaram tão raros que, acho, nem existem mais. Se há recordações que tenho muito especialmente como exclusivamente minhas, são as de quintais que sabiam guardar, pós-chuvas, as umidades de frescor, de meigos aromas; e, em ensolarados dias, encantavam-se em reter a luz das manhãs e das tardes para a intimidade do sazonar dos frutos e o perpassar do canto dos passarinhos. A cada quintal que se perde, que deixa de existir, registra-se, em algum lugar além da nossa percepção, um pontinho a mais no rumo do fim do mundo.
Ora, amigos, vamos falar a verdade, nos raros velhos quintais que ainda temos, continuam a morar os elfos, gnomos e duendes que são a melhor expressão das verdades de nossas fantasias. E isso é tão mais importante porque de repente, num certo recanto da Chácara da Barra, redescubro que num quadrilátero entre muros tomados por heras e árvores muito antigas, se materializa um foco de resistência contra o término dos tempos.
A generosidade da dona da casa me permite, sempre que necessito, quem sabe, para a própria sobrevivência, permanecer ali o quanto queira. Chego carregando, às vezes, um sanduíche embrulhado e uma latinha, e lá vou para o trono que me é destinado: uma grande pedra com musgos, sob a qual certamente vivem lagartixas e lagartos que a vida esqueceu. Quintais, apesar de meio contidos em suas essências físicas, abrem caminhos sem limites. Em suas permissões às parábolas terminamos por descobrir quão grande, quão enorme é o simbolismo a que conduzem os pequenos tufos de capins que brotam junto aos muros, entre raízes de árvores muito velhas, ou entre seixos que, em algum tempo, rolaram sob o tropel dos meninos. Ficam sempre, nestes espaços, os ecos das vozes de crianças que por ali brincaram. Os suspiros dos amores que se esconderam entre tufos, ou a carícia da rosa que brotou em certa manhã para ser levada ao colo fendido pelo “V” invertido de seios muito alvos.
Ah, os muros que sempre despertavam os desejos pelas pitangas ou goiabas dos vizinhos. Ah, o passar do vento entre os galhos tão bem postos nos roteiros dos bem-te-vis e rolinhas. Outras vivi sim, mas como esquecer tantas tardes em que busquei no chão relvado o torso do cavalo baio. Em que busquei a síntese de luz no brilho fugidio dos olhos dos pássaros que, sempre, fazem escalas para exercitar o fugir no rumo do azul nas horas mais propícias.
Neste quintal que minha amiga, digamos, me empresta, há um velho pinheiro de galhada larga. Ele me parece mais antigo não só do que a casa. Mas também do que a rua ou, quem sabe, até do que a cidade. Os troncos antigos retêm cantos e memórias. Nenhum outro ser vivo, neste mundo, sabe receber o que de profundo há nas chuvas e nos ventos. E a água que por eles escorre em lento passar de cintilações, é a certeza de que a vida resiste para a consecução do belo.
Na última visita quis ficar até a noite. Para sentir a luz ir, aos poucos, escoando com a suavidade do impalpável. Observar a mutação da cor das folhas que passam lentamente do verde para o quase negro. Colocar a mão para sentir o vento que escorre pelo alto dos muros depois de ter recolhido todos os aromas que as tardes contêm. E, afinal, amigos, há o inevitável das estrelas. Assim que surge a primeira, formulo o meu desejo e levanto. O luar há de ficar pra mais tarde. Ele virá, direto daquele quintal, para penetrar pela minha janela.
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ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.