Estrampícios e desatinos. Por Marli Gonçalves
Só inventando novas palavras, fazendo trocadilho para suportar o que em uma semana já bombardeia o mundo: os estrampícios atordoantes vindos lá da América rica, poderosa, nos deixam a todos atentos e temerosos. Ecos de uma nação, novamente sob o comando de Donald Trump, e onde agora este aparece ainda mais doido e age como se dono do mundo fosse e mande e desmande o que quiser, no que quiser.
É difícil manter bom humor e serenidade em estar assistindo aos fatos e vivendo época tão delicada, com acontecimentos tão hostis e potencialmente perigosos que se acentuam a cada dia, acelerados ainda mais essa semana com a posse de Donald Trump para um segundo governo na presidência dos Estados Unidos. A gente ri, tira sarro dele, faz memes, comenta o chapéu da Melânia, debocha dos baba-ovos brasileiros que foram até lá ficar no frio do lado de fora.
Mas a coisa é séria, real – desta vez foram apenas cinco dias que precipitaram e abalaram o mundo, numa contagem alucinante. Teremos de ainda ouvir muitos “estrampícios”, fusão de Trump com estrupício, o que certamente o define, um estorvo, um problema, comportamento despropositado, esse estúpido modo de governar achatando o que vê pela frente. Uma movimentação intensa na política e ordem americana que já espirra para tudo quanto é lado e chega aqui e, pior, se alia e fortalece aos que aqui tentaram o mesmo poder imperial, avançando sobre pautas muito sensíveis, como meio ambiente, diversidade, cultura e igualdade racial e de gênero.
A impressão é que Trump passou todos os anos do Governo Biden remoendo, tramando, mastigando ódio, com um caderninho onde anotava espinhos que lançaria imediata e violentamente se voltasse ao poder. O que faz desde as primeiras horas de sua chegada. Os piores espinhos deve ter pensado enquanto nestes anos sentava nos tribunais para ouvir acusações e tentar se defender de escândalos e tantas que o levaram a ser um presidente condenado. Tudo bem, com condenações suspensas; mas condenado.
O que vai ser daqui para a frente, creio, ninguém sabe, nem os americanos que inacreditavelmente o elegeram e, como ocorreu aqui, certamente muitos deles se arrependerão em pouco tempo. Mas ele governará ao lado dos poderosos amigos, a começar pelos da tecnologia que a tudo envolve nesse momento distópico, mas bem real, e que veio sendo construído sem que nos déssemos conta de sua extensão. E onde mentiras, manipulação de dados, destruição de reputações e o extenso controle digital são liberados em nome de uma tal liberdade; mas a que eles admitem e formulam, convencendo tanto mentes frágeis como saudosistas do século passado.
O pega pra capar já começou. Revogação de direitos, de organismos, das adesões a instituições internacionais, como a Organização Internacional da Saúde, OMS, retirada de acordos, como a Carta de Paris, proibição, cancelamento e esquecimento de promessas e projetos ligados aos direitos humanos, à cultura, conhecimento. Abriu as portas das prisões que detinham o inferno causado na invasão do Capitólio, anistiou uns, vem prendendo outros, expulsando, deportando, perseguindo imigrantes, incentivando seus seguidores à caça, armados e perigosos, incentivando delações, espalhando a discórdia. Beligerante, ameaçando e fazendo pouco de outras nações.
A impressão que deixa nesses primeiros dias com seus arroubos e cara fechada é a pior possível. Mas muitos analistas acreditam – e já há juízes que o contrariam acenando com a invejável Constituição americana – que não passarão de arroubos, Deus os ouça. Ou ele próprio ainda poderá, inclusive, ter sua vida em risco, como a História já presenciou.
Como se vê não é apenas uma questão de chapéu escondendo a rudeza e o olhar cada vez mais duro de Melânia o que veremos, mas um gigantesco ajuste geopolítico de forças, e entre o Ocidente e o Oriente. Que os americanos não sejam ainda mais odiados, tidos como culpados por isso. Que também passemos a nos atentar ao que vem de outras culturas, milenares, como a de uma China cada vez mais crescente, grandiosa, presente no nosso dia a dia.
O problema é que parece que tudo nesse planeta só se cria e se desenvolve junto ao horror da opressão e sujeição dos povos aos seus tiranos.
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MARLI GONÇALVES – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Chumbo Gordo, autora de Feminismo no Cotidiano, Coleção Cotidiano, Editora Contexto. (Na Editora e na Amazon). Vive em São Paulo, Capital.
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