Mugidos sobre o oceano. Por Antonio Contente
Mugidos… Graças à potência do binóculo, contei: a embarcação possuía nada menos de 10 andares. Com o coração em disparada, acompanhei o movimento do flutuante. Já com a certeza de que o ser das profundezas dos rios passara pelos pastos da Ilha do Marajó…
De vez em quando acho que há, por trás das lendas, certo toque que as esculpe como quase realidade. É recorrente entre os moradores ribeirinhos dos rios da Amazônia Profunda a história de que algumas cobras grandes, em noites sem lua, se transformam em enormes navios, iluminadíssimos, que levam, para as profundezas das águas, pessoas que conseguem encantar. Numa outra versão tal barco atrairia não gente, sim animais das florestas; levados para os reinos dos pélagos fluviais para alimentar ofídios de dimensões espantosas. Eu mesmo, na infância e até hoje, de vez em quando avisto, a passar ante meus olhos que nem mais ficam pasmos, as embarcações misteriosas.
Assim foi que, faz algum tempo, numa noite sem lua porém fartamente estrelada na ilha à qual me recolho de vez em quando no Delta do Rio Amazonas, sentei no alpendre de madeira em frente à minha choupana diante da baía a fim de sorver um uisquinho. Súbito começaram a surgir, no horizonte, luzes. Como eu ainda estava na segunda dose, não poderia atribuir ao efeito do líquido das Terras Altas da Escócia a visão. Assim corri a pegar meu formidável binóculo com o qual perscruto até as crateras da lua, e focalizei sobre a aparição fantástica. O susto com o que vi acabou por ser tão violento, que por pouco não tombei, desfalecido. É que tive certeza que o navio era realmente uma cobra grande a conduzir quantidade impressionante de bois. Isso mesmo, bois, gado, mamíferos ruminantes postos em compartimentos simetricamente montados uns sobre os outros. Graças à potência do binóculo, contei: a embarcação possuía nada menos de 10 andares. Com o coração em disparada, acompanhei o movimento do flutuante. Já com a certeza de que o ser das profundezas dos rios passara pelos pastos da Ilha do Marajó, distante do meu tugúrio umas cinco horas de lancha, para arrebanhar os quadrúpedes que levava. Logo, todavia, nova perturbação tomou minha mente. Pois apesar da luminosidade pouca, porém graças à eficiência da luneta, consegui ler no alto da proa da embarcação: “Ocean Drover”. Dei um pulo e berrei para o nada:
— Pombas, navio que na verdade é cobra grande não pode ter nome! Ainda mais em inglês…
Como a seguir o enorme paquete sumiu por detrás de outra ilha entre as inúmeras do delta, só vi aumentar minha excitação.
Dormi mal e no dia seguinte cedo chamei pelo rádio o barqueiro que me conduz para o continente. Lá, me atraquei a um orelhão e liguei para o jornalista Gregório Mazzini, correspondente de um grande jornal do Rio em Belém. Antes que ele dissesse qualquer coisa, berrei:
—- Você já ouviu falar num navio chamado “Ocean Drover”?
— Claro, fiz a cobertura da passagem dele por aqui. É o maior do mundo usado para transportar bois. Veio pegar um enorme carregamento no Porto de Vila do Conde. Está levando para o Líbano 16.459 bovinos da raça nelore.
O resto aconteceu como uma cascata. Fui apanhar Mazzini em casa e caí de susto em susto com as informações que me repassou. Começou afirmando que o “Ocean Drover” poderia embarcar até 20.000 bois vivos, e era tão especial nesse tipo de trabalho que o Discovery Chanel, que se vê no Brasil pela TV a cabo, já fizera longo documentário sobre ele. Tive a confirmação de que realmente possuia dez andares, e que demoraria 12 dias para levar sua carga ao Oriente Médio. Depois das informações que me deixaram zonzo, perguntei para Mazzini sobre certos dados que, a partir daquele instante, começavam a me preocupar. Peguei precisa calculadora e comecei:
—- Um boi, em média, faz quase 10 quilos de cocô por dia. No caso dos passageiros do barco, como são 16.459, estão despejando 164.590 quilos de fezes a cada 24 horas. Em 12 dias de viagem terão soltado 1.975.080 quilos da mais pura merda. Que só poderá ser jogada no mar, é claro. Além disso, os puns e arrotos, freqüentíssimos, dos bois, são comprovadamente importantes responsáveis pela destruição da camada de ozônio. E olha que nem estou contando o xixi, que até poderá intoxicar algumas baleias jubarte, espécie em extinção…
Nesse instante observo que o colega me olhava relativamente inquieto. Suspirei, então:
— É isso, meu caro. Pode até não ser, mas essa viagem dos quadrúpedes do Pará à Síria tem algo de um robusto desastre ambiental…
Daí, eu nada mais disse. Mesmo porque nada mais me foi perguntado.
________________________________________________________
ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.