O japonês do amanhecer. Por Antonio Contente
Mal abria a porta do seu estabelecimento, passava a varrer a calçada; o que me acordava. Apelidei-o de “o japonês do amanhecer”…
Seu nome era Tabo Nakagawa, japonês importado. Naquele tempo nós morávamos na República dos Jornalistas, uma pensão nos Campos Elíseos, em São Paulo, assim batizada porque lá viviam vários focas que começavam a vida profissional na falecida “Última Hora”. Tabo habitava uma casa em frente à nossa pousada, meio quitanda meio empório. Como eu ocupava um dos quartos com janela que dava para a rua, o japa funcionava, pra mim, como uma espécie de despertador. Mal abria a porta do seu estabelecimento, passava a varrer a calçada; o que me acordava. Apelidei-o de “o japonês do amanhecer”.
Foi de repente que tive a surpresa. Despertei com o barulhinho, abri a janela e quem varria não era o simpático personagem, sim uma vistosa mulata. Aliás, dizendo vistosa acho que não dou e real dimensão dos encantos da moça. O que certamente dou ao afirmar que se tratava de uma figura soberba, escultural, bumbum empinadissimo, muito melhor do que a lendária Globeleza de outrora, que se aposentou para deixar os holofotes e entrar na história. Logo o componente maldoso que sempre se opôs às minhas inocências, concluiu que a bela figura não poderia ser apenas serviçal de Tabo. O que se confirmou na continuação dos dias. Primeiro, ao descobrir que ela dividia o mesmo teto com o operoso nipônico; segundo, num certo amanhecer de verão em que levantei mais cedo, vi o homem dispensar meigos afagos à mulata que saia para sua tarefa de varrer a calçada. Isso fez aumentar a admiração que eu já tinha pelo súdito do Império do Sol Nascente.
Passou-se mais ou menos um ano em que, de longe, acompanhei o singular romance. E confesso que foi com alguma preocupação que constatei, em certa manhã, que quem varria a calçada não era ela, mas ele. Num primeiro momento, imaginei que a moça poderia estar indisposta. No dia seguinte, continuando sua ausência, calculei que tivesse viajado E mais conjecturas não tive tempo de fazer, pois a notícia explodiu como uma bomba atômica sobre a rua e, talvez, sobre o bairro: Tabo Nagakawa, japonês importado, como já disse, cometeu o harakiri usando, para tanto, uma autêntica espada de samurai, com a qual rasgou o ventre de homem apaixonado. Tomamos conhecimento da paixão porque ele deixou bilhete justificando o ato pelo fato da bela mulata tê-lo abandonado. Na matéria que eu mesmo escrevi para o jornal em que trabalhava, expliquei as razões que levaram o camarada a cometer aquilo que, no jornalismo da época, chamávamos de “tresloucado gesto”.
O desfecho da história aconteceu alguns meses depois quando, ao passar pela porta do Cine Niterói, na Liberdade, uma falecida casa que só exibia fitas japonesas, vi a vistosa mulata saindo, aos beijos e abraços, com outro japa. Nos meses seguintes acompanhei, ávido, as colunas policiais. Não, nunca li nada que falasse de um novo harakiri. O que, tempos depois, me levou a concluir: primeiro, que a moça e o novo par viveram felizes para sempre; e também que, no caso anterior, ela escolhera o nipônico errado.
________________________________________________________
ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos