FALENAS

Falenas. Por Paulo Renato Coelho Netto

O garoto escuta com atenção e pergunta o que significa a palavra falenas, do verso: Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas / Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas / Quando eles se entopem de vinho/ Costumam buscar o carinho / De outras falenas…

Coloco “Mulheres de Atenas” para um adolescente escutar e conhecer. Feita em parceria com o dramaturgo Augusto Boal, é uma das mais belas composições de Chico Buarque.

Chamo a atenção para os instrumentos, a introdução magistral, a sonoridade que precede e envolve a letra genial do início ao fim. A melodia que decola e vai cada vez mais para o alto.

O garoto escuta com atenção e pergunta o que significa a palavra falenas, do verso:

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas / Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas / Quando eles se entopem de vinho/ Costumam buscar o carinho / De outras falenas / Mas no fim da noite, aos pedaços / Quase sempre voltam pros braços / De suas pequenas / Helenas

No sentido literal, falena é um gênero de borboletas noturnas, são as mariposas que brilham sob o poste de luz.

Na música de Chico Buarque e Augusto Boal são prostitutas, mulheres solitárias que ganham a vida na penumbra e na penúria das esquinas mal iluminadas.

Ao se empanturrar de vinho, são as meretrizes que os guerreiros de Atenas buscam antes de voltar, aos pedaços, para as suas pequenas Helenas.

Composta em plena ditadura militar, em 1976, “Mulheres de Atenas” é uma crítica social do início ao fim.

Logo de cara, o alerta: Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas.

Mulheres sem vez e voz, nascidas para procriar, cuidar da casa e aguardar eternamente o marido, vivo ou insepulto. Viúvas abandonadas.

Cheia de metáforas, a música pode ser melhor compreendida sem que se leve em conta a literalidade. Como Gilberto Gil explica na canção “Metáfora”: Uma lata existe para conter algo / Mas quando o poeta diz: Lata / Pode estar querendo dizer o incontível / Uma meta existe para ser um alvo / Mas quando o poeta diz: Meta / Pode estar querendo dizer o inatingível.

É preciso empatia para sentir o completo abandono da prostituta/falena e da esposa abandonada na própria casa. Vidas diferentes, a mesma solidão.

Mulheres de Atenas trata da submissão feminina, do patriarca que exige sexo, refeição quente e camisa bem passada. Mulheres de Atenas é sobre machismo, condição que entrou o Novo Milênio quase tão irretocável quanto na década de 70.

Reaplicaram o verniz na mesma madeira cheia de cupim por dentro.

O preconceito que sufocava as mulheres de 1976 se alastrou e é defendido publicamente.

Mulheres de Atenas podem ser trabalhadores, homossexuais, povos originários, camponeses, estrangeiros, os pobres e os abaixo da linha da pobreza, entre outros tantos. Viúvos de cidadania.

O preconceito evoluiu ao ponto de virar plataforma política, receber milhões de votos e eleger o que existe de mais abominável entre os abomináveis.

O livre arbítrio faculta a cada um até mesmo a escolha para se tornar um completo idiota.

Quase meio século após o lançamento, Mulheres de Atenas causa emoção, une gerações, desperta a curiosidade, instiga abrir o dicionário, aguça o pensamento crítico e amplia a visão da vida e do mundo.

Em que momento perdemos o senso, o paladar, o olfato, a visão, o tato e a audição para a evolução individual e coletiva?

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paulo rena

Paulo Renato Coelho Netto –  é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.

 

capa - livro Paulo Renato

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