Mundo friorento. Por José Horta Manzano
Tenho notado que o mundo hoje está mais friorento que no passado. Não me refiro ao frio que o termômetro registra, aquele que bate quando um ventinho gelado sopra do Sul. Falo de falta de calor humano, de empatia, de amizade, de sintonia…
Artigo publicado no Correio Braziliense de 30 /dezembro/ 2024
Tenho notado que o mundo hoje está mais friorento que no passado. Não me refiro ao frio que o termômetro registra, aquele que bate quando um ventinho gelado sopra do Sul. Falo de falta de calor humano, de empatia, de amizade, de sintonia. Sinto que tem faltado aquela atmosfera cálida que, ao expandir, dissipa o gelo e a desconfiança entre as gentes. Faltam braços abertos.
Em 2015, a Alemanha da primeira-ministra Merkel abriu os portões para a entrada de um milhão de estrangeiros que vinham em busca de asilo. O gesto horrorizou numerosos governos europeus, que consideraram exagerado o número de recém-chegados e tacharam o gesto de desarrazoado. Há alemães, aliás, que reprovam até hoje a decisão da chanceler e não perdem uma ocasião para atribuir aos forasteiros todos os males da nação.
O fato é que, passados quase dez anos, os asilados, em grande maioria, se integraram, aprenderam a língua, formaram-se numa profissão, fundaram família e vivem hoje como os demais cidadãos da pátria adotiva. Esses novos cidadãos vêm complementar a mão-de-obra de que a Alemanha sabe que terá necessidade estes próximos anos, mas que o simples crescimento natural da população não lhe fornecerá.
Desde que Donald Trump assumiu seu primeiro mandato, em 2017, os novos tempos não têm sido benéficos para a conciliação entre os povos. Barreiras e muros foram erguidos na fronteira com o México para impedir a entrada de imigrantes pobres – num esquecimento maroto de que todos os que hoje apoiam o bloqueio aos forasteiros pobres são descendentes de imigrantes pobres que, um dia, também bateram às portas do país, foram acolhidos e ajudaram a fazer o que os EUA são hoje. Esquecem-se de que, num país em processo de envelhecimento, todo aumento populacional é bem-vindo.
Para seu segundo mandato, Trump ameaça abandonar a Otan, pacto de defesa que seu país mantém com a Europa há 75 anos. Esquecidos de que juraram governar para todos os brasileiros, os sucessivos governos do Brasil continuam a dar as costas para os povos amazônicos, obrigando-os a sobreviver atolados num território que o Estado enjeitou e de que o crime se apoderou.
Em vista de possível nova leva de imigrantes sírios, que ora têm liberdade de deixar o país de origem, a Europa nem de longe renovou a “operação acolhida”, da Alemanha de 2015. A ditadura de Damasco ruiu num fim de semana. Dois dias depois, os principais países europeus tomaram decisão idêntica: os processos de concessão de asilo a refugiados sírios foram suspensos sine die, com efeito imediato. É decisão provisória, com direito a revisão no futuro, mas supõe-se que, com uma Síria normalizada, as portas da Europa se fecharão de fato para os nativos daquele país.
Matteo Salvini, político italiano, teve problemas recentemente com a justiça de seu país por ter sido acusado de impedir durante três semanas, quando era vice-primeiro-ministro, o desembarque de 149 migrantes chegados no barco de uma ONG. Lembre-se que a Itália ocupa um dos últimos lugares na Europa no quesito fertilidade. Sua população é declinante.
Este mês de dezembro trouxe ainda duas notícias inquietantes provenientes do meio universitário. Na Suíça, o parlamento decidiu triplicar o valor da anuidade dos alunos estrangeiros das universidades federais. Alegando dificuldades orçamentárias, o congresso tomou essa decisão de puro populismo mesquinho. Quando formados, os alunos estrangeiros voltarão para casa como embaixadores gratuitos da excelência do país onde estudaram. Entravar a vida estudantil desses alunos é contrário ao bom senso.
A outra notícia preocupante nos veio de uma Argentina em plena mutação. Suas universidades públicas devem passar a cobrar anuidade dos alunos estrangeiros – somente deles. Valem aqui os argumentos que usei no caso suíço: estarão perdendo a ocasião de formar propagadores internacionais das virtudes do país.
Acho ingênuo acreditar que cheguemos tão já à fraternidade universal que teorias do século 19 nos prometiam. Ao contrário, percebo sinais inquietantes de estarmos, a passo contínuo, caminhando no sentido oposto. O lado friorento da humanidade está querendo nos ensinar que bom mesmo é se isolar, cada um vivendo no seu canto, todos de porta fechada. Alto lá! Nem tanto ao mar, mas também nem tanto à terra! Virtus in medio.
Feliz ano novo a todos!
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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos, dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.
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