O virtual é o antolho do Novo Milênio. Por Paulo Renato Coelho Netto
Antolho…Como vítimas de uma praga equina, o mundo virtual nos domou, montou, encilhou, colocou a cabeçada, as rédeas e o freio, apertou a barrigueira até faltar ar e jogou um pelego por cima do que restou da dignidade do ser humano…
Geralmente feitos de couro, antolhos são tapadeiras que impedem cavalos de olhar lateralmente. Com eles, a visão de 180 graus se estreita e o animal é forçado a olhar para frente.
Há todo um preparo até subjugar a montaria. Antes dos antolhos, a doma.
Domar é trocar o espírito do cavalo. É permutar liberdade por esporas.
O cavalo nunca mais retornou ao estado natural após acomodar o primeiro ser humano no lombo.
Colocaram cabresto. Depois o freio, uma peça de ferro que vai dentro da boca que serve para punir o bicho. Passou da linha, freio.
Como se não bastasse o peso extra, além do homem o cavalo carrega a sela amarrada bem forte pela barriga. Nela, os estribos. Nos estribos, as botas e esporas de quem manda em quem.
Insatisfeito com a crueldade física, o ser humano inventou os antolhos para subjugar completamente o animal. Só verá para onde a cabeça for conduzida.
Sobre ferraduras, finalmente ele vai andar, trotar, galopar e olhar conforme a vontade ou a necessidade do cavaleiro.
Fim de jogo para o cavalo.
Como vítimas de uma praga equina, o mundo virtual nos domou, montou, encilhou, colocou a cabeçada, as rédeas e o freio, apertou a barrigueira até faltar ar e jogou um pelego por cima do que restou da dignidade do ser humano.
Ao contrário dos cavalos, nascemos com antolhos. Raros se livram, mesmo que morram mais velhos que velhas mulas teimosas, nome que se dá às fêmeas do cruzamento entre o jumento e a égua. Quando é macho, o filho desses dois ganha o nome de burro.
Nos tornamos irracionais ao ponto de menosprezar a realidade para cultuar a virtualidade.
Uma simples procura no dicionário explica o que é virtual.
Por definição: Virtual, adjetivo. Não real; simulado eletronicamente: imagens virtuais.
[Informática] Que existe unicamente como resultado de uma demonstração ou simulação criada por um programa de computador: biblioteca virtual. Teórico; sem consequência real; cuja existência ocorre em teoria.
A era virtual é um mar de felicidade. Todos são felizes. Todos os pais e avós são maravilhosos. Todos os casamentos são perfeitos. Todas as viagens inesquecíveis. Todos os amores eternos e todas paixões resultam em romances sem fim. Toda família é feliz.
A era virtual é um mar de lama de felicidade editada. Todos são felizes, só que não ou nem tanto. Todos os pais e avós são maravilhosos, como se não fossem humanos antes de se tornarem pais e avós. Todos os casamentos são perfeitos, como se não existissem contas a pagar e fadiga no fim do dia. Todas as viagens são inesquecíveis, até que alguém tenha diarreia fora de casa. Todos os amores eternos e todas paixões resultam em romances sem fim, como se a eternidade não passasse da maior ficção humana. Toda família é feliz, até que alguém acenda a luz da verdade no centro da sala e levante o tapete que esconde a sujeira das aparências.
Não há virgens na zona virtual.
Cabe a pergunta. Se a virtualidade fez com a gente o que fizemos com os cavalos, quem estaria de esporas sobre o seu lombo neste exato momento?
Quatro ou quatrocentos cavaleiros do apocalipse, a resposta aproximada. Podem ser o dono e os acionistas da rede social. Pode ser a solidão, o ego desmedido, a insegurança em forma de corpo bem definido na academia, a autoafirmação de conceitos descartáveis, o autoengano diante da realidade, a imagem de concreto que esconde um graveto, a fantasia de bem-sucedido do arruinado, o rugido da gazela, o vazio que faz dançar para a câmera do celular, o inocente útil da política, o lacaio à serviço do esperto do momento.
Quem estaria de esporas sobre o seu lombo?
O virtual domou, mas ainda resta o livre arbítrio para retirar os antolhos e a boçalidade que vem junto.
A escolha é pessoal.
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Paulo Renato Coelho Netto – é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.
O ser humano sempre teve antolhos, desde a antiguidade; eram/são os preconceitos e as ideologias. O mundo virtual só amplificou isso.