É difícil uma conclusão sobre ano que passou tão rápido. Por Fernando Gabeira
Conclusão? …A oposição ganhou e não levou na Venezuela, e a ditadura de Maduro vai se tornando uma paisagem natural…
Não tenho nenhuma conclusão definitiva sobre o ano que termina, exceto que passou rápido, voou como todos os outros ultimamente.
Destaco a eleição de Trump como algo que, indiretamente, marcará nossas vidas. Comemoro a queda de Bashar al-Assad na Síria, mesmo sabendo que inaugura uma era de incerteza.
Li sobre o impacto do El Niño no contexto das mudanças climáticas, mas me surpreendi com as devastadoras tempestades no Sul. Tudo o que tentamos antecipar numa sessão do Senado era quase nada diante da destruição que se aproximava.
Sofremos com os gritos sobre escombros em Gaza, mas hoje se tornaram apenas gemidos. Quase não se fala mais nisso. Foi horroroso o desfecho do processo eleitoral na Venezuela. A oposição ganhou e não levou, e a ditadura de Maduro vai se tornando uma paisagem natural.
Curiosidade. Li três relatos autobiográficos de forma isolada e descobri que os três autores são amigos: Salman Rushdie, Martin Amis e Christopher Hitchens. Escrevi um texto sobre o livro “Faca”, em que Rushdie conta o atentado à faca que sofreu. O livro de Amis “Os bastidores” é sobre a arte de escrever, cheio de intuições geniais. E, finalmente, Hitchens fala, em “Mortality”, de sua convivência com um câncer devastador, passando por clínicas ultramodernas, fazendo palestras e debates heroicamente, na base de morfina e adrenalina.
Hitchens era um intelectual exuberante. Esteve no Brasil, mais precisamente na Festa Literária Internacional de Paraty. Participamos de uma mesma mesa. Divergimos frontalmente quanto à invasão do Iraque, para mim baseada numa mentira que Colin Powell contou na ONU: o Iraque, disse ele, tinha armas de destruição em massa. Hitchens ficou um pouco irritado comigo e creio que me tomou como um radical de esquerda. Alguns meses depois, mencionou minha trajetória com simpatia num artigo. Uma prova de grandeza e generosidade.
O mais importante em “Mortality” é ver tanta lucidez e coragem diante de uma situação terrível, o corpo manipulado por estranhos, o mergulho irreversível no território da doença, a certeza da proximidade do fim. Hitchens não aceita a clássica expressão: lutar contra um câncer. Ele vivia com paixão, apesar do câncer que o atacava.
A extraordinária trajetória de Hitchens me fez conhecer melhor a mortalidade. No mesmo ano, relendo Fernando Pessoa, pensei nestes versos que poderiam completar minhas anotações: Se soubesse que amanhã morria/E a primavera era depois de amanhã/Morreria contente porque ela era depois de amanhã/Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
No Brasil estamos mergulhados numa crise de segurança pública. Nem todos se dão conta. No campo político, o grande fato foi a revelação de uma tentativa de golpe que até mataria Alexandre de Moraes, envenenaria Lula e Geraldo Alckmin. Escrevi muito sobre isso, colocando algumas questões que me parecem pertinentes. Não importam muito. Haverá um julgamento, e isso está mais ou menos marcado para setembro.
Mas o ano que passou, passou. Num próximo artigo escreverei sobre o ano que entra e todas as coisas que já sabemos que acontecerão em 2025. Trata-se de um modesto exercício, num país de realismo mágico, habitado por um personagem de Nélson Rodrigues que não se limita ao futebol: o Sobrenatural de Almeida.