Amor próprio em queda livre. Por Myrthes Suplicy Vieira
… Se examinadas com cuidado as circunstâncias anteriores à queda, é possível perceber que por trás de cada queda física repetitiva existe uma queda emocional, um abalo na autoimagem de competência, um rebaixamento da autoestima. Cair está simbolicamente associado com render-se à própria vulnerabilidade…
Ah, as peças que o inconsciente prega na gente!
Sofri duas quedas em sequência: a primeira, em maio do ano passado, quando fui derrubada e arrastada por minhas cachorras durante um passeio, e a segunda, em setembro passado, quando escorreguei “sem querer” em um rastro de óleo deixado pela minha atual companheira de quatro patas no chão da sala ao atacar uma lata de sardinhas que eu havia esquecido sobre a pia da cozinha.
Nas duas ocasiões, as consequências físicas foram terríveis: fratura no ombro esquerdo e fissura no quadril da primeira vez e agora fratura do fêmur e deslocamento grave da clavícula direita. Dores acachapantes, longos meses de fisioterapia para recuperar os movimentos, sequelas limitantes. Por quê? Eu estava passando por um período relativamente tranquilo de vida e de trabalho, embora me queixasse ocasionalmente de tédio e falta de perspectivas. Então, como explicar meu desejo inconsciente de me machucar?
À primeira vista, pode parecer que fui vítima involuntária de circunstâncias imprevisíveis. Aliás, esse costuma ser o argumento usado por 10 entre 10 vítimas de acidentes ou incidentes repetitivos. Curiosamente, nenhuma das minhas quedas ao longo da vida foi causada por distração, baixa visão ou problemas de articulação típicos dos idosos. Houve sempre um estímulo externo com impacto forte o bastante para me desequilibrar – o que pretensamente serviria para comprovar minha “inocência” na causação da queda.
Mas por que, então, a repetição de tantos acidentes? Lembro que no ano passado estava claro na minha consciência que eu sentia não ter forças suficientes para sair sozinha do buraco existencial e profissional em que eu própria havia me metido. Cheguei a perguntar a uma amiga, que funcionava como uma espécie de guru para mim, se ela achava que eu ainda estava sujeita a novas quedas ou se a simples conscientização quanto à minha responsabilidade já serviria para interromper a série de acidentes fortuitos. Ela me deu uma resposta à la lusitana, que guardo até hoje como alerta: “Se o motivo que leva você a cair desapareceu, então você não vai mais cair”.
Não é minha intenção psicologizar ou generalizar indevidamente as causas de uma ocorrência tão natural, inevitável na vida de seres bípedes. Parafraseando o velho e querido mestre Freud, às vezes um tombo é só um tombo mesmo. Mas, quando ele se repete indefinidamente e é causado por circunstâncias bastante diferentes entre si, há que se suspeitar da presença de um fator desestabilizador complementar à força da gravidade, não é mesmo?
Já tinha visto essa intrigante repetição de traumas físicos acontecer na vida de outras pessoas. Minha mãe, por exemplo, sofreu três quedas consecutivas após um longo e doloroso processo de divórcio: a primeira dentro de um ônibus, quando o motorista acelerou antes que ela pudesse se sentar; a segunda dentro de um táxi, que ela havia imaginado ser mais seguro, mas que bateu no meio do percurso, projetando-a para a frente e fazendo com que batesse a cabeça no painel; e a terceira, devido a um choque ultra potente no chuveiro que a fez voar e cair sobre o bidê, provocando fraturas em várias costelas e escoriações por todo o corpo e cabeça. Gato escaldado, ela me confidenciou que passou a sentir muito medo de ser atropelada. Não pude deixar de pensar com os meus botões que, sem o perceber, ela já havia permitido que a vida a atropelasse diversas vezes.
O que quero dizer com tudo isso é que o cenário para os tombos recorrentes é montado de tal forma que não reste a menor dúvida nos circunstantes de que a pessoa não teria como prever nem controlar o desenrolar dos acontecimentos. Contudo, a frequência, o sentido e a gravidade das lesões permitem começar a suspeitar que há vetores presentes no psiquismo da pessoa que apontam para a “vontade” – inconsciente – de se paralisar, de postergar indefinidamente a iniciativa de buscar ajuda e até a disposição de abrir mão da própria autonomia em troca de um amparo exterior.
Se examinadas com cuidado as circunstâncias anteriores à queda, é possível perceber que por trás de cada queda física repetitiva existe uma queda emocional, um abalo na autoimagem de competência, um rebaixamento da autoestima. Cair está simbolicamente associado com render-se à própria vulnerabilidade – o que um ego narcísico, controlador e perfeccionista (como o meu) não aceita. Tem a ver com a incapacidade de entrega amorosa às tentações (boas e más) do destino, fundada obviamente no medo da rejeição. Mas, forçoso é admitir, pode ser também uma maneira desesperada de materializar um sofrimento psíquico que muitas pessoas próximas não conseguem perceber.
O que a “vítima” de acidentes recorrentes não lembra antes de cair é que, ao abrir mão da própria autonomia, todas as decisões que determinam como ela prefere levar a vida passarão a estar dali em diante nas mãos dos cuidadores que se apresentarem para ajudar – até nas coisas mais simples, como a hora de acordar/ir dormir, o que comer ou como ocupar as horas vagas. Será que essa troca vale a pena?
Uma coisa é certa: não basta levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima a cada vez que se cai.
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(*) Myrthes Suplicy Vieira – é psicóloga, escritora e tradutora.