Um lugar na janelinha. Por Aldo Bizzocchi
… uma criança chora pedindo para viajar na janelinha do avião, a moça sentada à janela — que pagou por esse assento — permanece indiferente, a mãe da criança nada fala, mas uma terceira mulher resolve tomar as dores do menino…
A semana que passou foi marcada por uma polêmica inusitada: num voo do Rio de Janeiro a Belo Horizonte, uma criança chora pedindo para viajar na janelinha do avião, a moça sentada à janela — que pagou por esse assento — permanece indiferente, a mãe da criança nada fala, mas uma terceira mulher resolve tomar as dores do menino e começa a filmar a jovem sentada à janela dizendo que, em pleno século XXI, ela não tem coração, não tem nenhuma empatia pela criança, e por aí vai. Depois, a filha dessa mulher espalha o vídeo em suas redes sociais e o assunto viraliza, polarizando mais uma vez a nação. De um lado, os defensores da jovem Jennifer, a moça da janela, argumentando que ela exerceu seu direito ao assento com vista para as nuvens e reprovando a mãe da criança mimada, que não saberia impor limites ao filho. De outro, os defensores de Aline, a mãe, acusando Jennifer de insensibilidade e egoísmo. E nenhum dos lados sabendo que quem provocou a controvérsia foi a nutricionista Eluciana, que filmou a cena e fez os comentários desairosos contra Jennifer. Mas esta, até então uma pacata bancária anônima, de repente ganhou dois milhões de seguidores em suas redes sociais sem ter feito absolutamente nada — literalmente nada! Agora já vem sendo assediada por marcas que a querem como sua garota-propaganda.
Esse episódio nos ensina várias lições. Primeiro, que hoje, na era dos smartphones, qualquer um que se sinta de alguma forma injustiçado ou ultrajado se acha no direito de sair filmando os outros, em flagrante desrespeito ao direito de imagem, ao direito à privacidade e até ao direito à ampla defesa.
Segundo, que hoje qualquer um se sente no direito (eu diria até no dever) de passar adiante em suas redes sociais qualquer tipo de notícia capaz de causar controvérsia — e com isso obter engajamento — sem checar a fonte ou a veracidade da informação. Se a notícia em questão for uma fake news ou um fato descontextualizado, o estrago já estará feito. E a monetização garantida.
Em terceiro lugar, a internet se transformou no grande tribunal de justiçamento público, no qual as pessoas julgam, sentenciam e executam o linchamento moral dos outros sem possibilidade de apelação e, o que é pior, sem se aterem à realidade dos fatos. Como disse certa vez um famoso editor de jornais, se a versão é mais interessante que o fato, publique-se a versão.
Em quarto, hoje em dia as pessoas são muito ciosas de seus direitos, mas não tanto de seus deveres, logo todos dão carteiradas em todos. Quer dizer, todos não: ainda há pessoas de bom senso e dotadas de civilidade e gentileza, que dialogam em vez de agredir, mas são cada vez em menor número.
Por último, qualquer pessoa absolutamente medíocre pode tornar-se uma (sub)celebridade e gozar de seus quinze segundos de fama (quinze minutos é uma eternidade hoje em dia) sem ter mérito algum; a opinião do grande pensador e a do tiozinho do zap têm o mesmo peso nas redes. Isso quando a deste não dá mais ibope que a daquele!
Agora que as grandes emissoras de televisão restabeleceram a verdade dos fatos, esclarecendo quem é quem nessa história, pouco importa: o partido já está tomado, o linchamento tanto de uma quanto da outra já foi feito, o vídeo já foi monetizado, o senhor Mark Zuckerberg já ficou (ainda) mais rico, e vida que segue, com uns metendo o bedelho em escala global na vida dos outros.
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Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.
Acaba de lançar, pela Editora GrupoAlmedina,
“Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”
Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br
Hoje em dia, qualquer idiota fica famoso em 15 minutos. Por 15 minutos.