O cancelamento nosso de cada dia. Por Aldo Bizzocchi
Cancelamento… criticar ou injuriar pretos e pardos pelo simples fato de serem pretos ou pardos é, sem dúvida alguma, um abominável ato de racismo, especialmente porque ninguém tem o poder de escolher a cor da própria pele (que eu saiba, Michael Jackson foi o único a fazer isso). Mas criticar uma política governamental de cotas…
Dia 17 último, durante os Jogos Jurídicos tradicionalmente disputados entre alunos de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), torcedores desta última gritaram impropérios de cunho supostamente racista contra os estudantes da USP, chamando-os de “cotistas” e “pobres” (usei a expressão supostamente racista porque cotista e pobre não são, salvo melhor juízo, denominações de raça e sim de condição social).
Já no dia 27 deste mesmo mês, a desembargadora Rosita Falcão Maia, durante uma sessão do Tribunal de Justiça da Bahia, fez críticas ao sistema de cotas raciais adotado no Brasil ao dizer que elas “vieram mais para desunir do que unir a população”. A sessão deliberava sobre a admissão ou não de uma candidata aprovada como cotista num concurso do próprio Tribunal.
A desembargadora também afirmou que “a meritocracia é importantíssima no serviço público”. E ainda alegou que a Faculdade de Direito da Universidade da Bahia (UFBA) “era excelente, [mas] hoje já não é tanto, porque todos os professores comentam o desnível dos estudantes. O nível dos estudantes baixou”.
Por fim, a filha de um amigo meu saiu-se muito bem no vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mas foi barrada pela política de cotas. Obteve nota geral 7,65 enquanto os cotistas entraram com menos de 6,00.
Tanto a manifestação dos torcedores da PUC-SP quanto a da magistrada baiana foram intensamente repudiadas por seu caráter racista, preconceituoso e discriminatório.
Bem, criticar ou injuriar pretos e pardos pelo simples fato de serem pretos ou pardos é, sem dúvida alguma, um abominável ato de racismo, especialmente porque ninguém tem o poder de escolher a cor da própria pele (que eu saiba, Michael Jackson foi o único a fazer isso). Mas criticar uma política governamental de cotas ou enaltecer o critério do mérito não constituem crime. Principalmente quando a crítica tem algum embasamento. E parece que a da desembargadora tinha.
Primeiro, ela apontou o próprio diagnóstico dos professores do curso de Direito da UFBA. Em segundo lugar, o episódio dos Jogos Jurídicos USP x PUC demonstra que, de fato, as cotas geram divisão em vez de promover união. Antes delas, a presença de um aluno negro nos bancos da universidade, ainda que minoritária, era digna de louvor, visto que o estudante em questão havia superado inúmeras barreiras — de pobreza, de educação precária, de desestímulo social, de dificuldade de transporte e alimentação — para chegar àquela posição. Era alguém que fez por merecer o lugar onde estava. Hoje, os cotistas são vistos por muitos colegas não cotistas como alguém que entrou na universidade pela porta dos fundos, alguém que, sem ter o devido mérito, usufruiu um privilégio. Não vou entrar aqui nas espinhosas questões de reparação histórica, promoção da diversidade, combate ao racismo, etc. etc. Estou apenas me referindo ao sentimento de injustiça que muitos alunos, como a filha de meu amigo, nutrem em relação a colegas que, em termos de bagagem cultural, estão em posição inferior. Sentimento esse que produz desunião e desconfiança num ambiente que deveria ser de fraternidade e coleguismo.
Mas, como se vê, a própria crítica à política de cotas, cujo objetivo seria o de combater o racismo, de que está na prática alimentando o racismo, ainda que escorada em fatos, é ela própria acusada de ser racista. Diante disso, só nos resta depositar flores sobre o túmulo da liberdade de consciência e de expressão do pensamento.
O que me choca é que, quando magistrados, professores, estudiosos e intelectuais criticam esta ou aquela política, não o fazem com propósito depreciativo e sim com espírito de crítica construtiva, de quem deseja aperfeiçoar o sistema e não destruí-lo. Mas mesmo a crítica construtiva é vista como um ataque aos direitos — e talvez até privilégios — conquistados por certas minorias, que por meio deles exercem seu poder de censurar e cancelar qualquer um que pense diferente.
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Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa.
Acaba de lançar, pela Editora GrupoAlmedina,
“Uma Breve História das Palavras – Da Pré-História à era Digital”
Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br