A casa. Por Antonio Contente

…Uma casa te protege do sol e da chuva, mas te lança aos braços do que o tempo constrói. Nela alguns espaços armazenam sortilégios que só aos seus olhos encantam…

casa

         Sim, a casa sempre esteve em minhas lembranças. Mesmo depois que, por circunstâncias de estudo e trabalho em São Paulo saí dela. E, sem volta, seguiu sendo o refúgio, impalpável e até palpável, em muitas ocasiões. Afinal foi o lugar em que durante tantos anos, com pais e irmãos, vivi. Na intimidade de aposentos amplos e aquele quintal de encantos; árvores, tantas árvores por onde se espalhavam restos de voos de  passarinhos e, nas noites propícias, luares integrais em derramamentos sobre copas e ninhos que dormiam. Uma casa não é só o que está dentro dela, mas tudo que a cerca. É também a rua, as mangueiras que a sombreiam, o céu com nesgas azuis entre galhos, e até os cantos dos sabiás da aurora que, em Belém do Pará, naquele tempo, vinham com o sol.

         Cheguei àquela casa num ano marcante para o mundo e pra mim. Para o primeiro, porque marcou o término do horror da II Guerra. Para mim porque foi quando senti, pela primeira vez, o aroma do quanto era possível ver através de uma janela olhando por ela em sentido contrário, de fora para dentro. De cara nem me espantei ao largar os olhos pelos aposentos amplos. Todos tinham sido burilados por meu pai que comprara o imóvel em 1939, mas nele só colocou a família sete anos depois quando a grana ficou no ponto para os aperfeiçoamentos necessários.

         Uma casa te protege do sol e da chuva, mas te lança aos braços do que o tempo constrói. Nela alguns espaços armazenam sortilégios que só aos seus olhos encantam. E que se, nas manhãs se abrem à amplidão para receber companhia, de noite chama ao regaço do sossego íntimo que abriga a gênese da abertura dos primeiros caminhos. Para os passos em chãos de terra, ou para o alargamento de horizontes que fatalmente nos levam às ondas de mares nunca d’antes navegados.

         Por muitos anos, depois que saí dela, a casa seguiu sendo da família, o que me propiciou a, tantas vezes no mundo competitivo no qual passei a viver, ir nela me abrigar para a carícia do renascer no que permanecia gravado em suas paredes e nas árvores do imenso quintal. Também no significado das costumeiras chuvas que só ali sabiam deslizar águas a escorrer para formar as cascatas dos beirais.

         Foi de repente que recebi, faz alguns meses, a notícia, lacônica, enviada por irmã a quem o imóvel pertencia: ele seria derrubado por ter sido vendido a uma construtora. “No local será construído um grande prédio”, a informação acentuava. Depois de ler, nada se modificou dentro de mim. Não acreditei que aquilo pudesse ser verdade. A casa permaneceria onde sempre esteve. Abrigo de realidades a que a vida, ao longo dos tempos, dá feições. Bonitas, mais ou menos, nem tanto, ou, simplesmente, esplendorosas.

         Pouco antes do último mês do ano passado quando os pneus do avião que me levou à Belém do Pará bateu na pista, já estava tudo devidamente resolvido em minha cabeça: pegaria um táxi e iria rever a casa.

         Após a corrida, ruas sombreadas por mangueiras, paro diante do imóvel e me assustei por ver, apenas, imenso tapume. Salto do veículo e avisto um porteiro abrigado em guarita. Vou ao homem e pergunto o que tinha sido feito do lindo solar. Laconicamente responde, apenas, que acabara de ser derrubado. Perguntei, então, se poderia entrar no terreno a fim de verificar se as maravilhosas árvores, plenas das sinfonias dos ventos e dos voos dos passarinhos, permaneciam vivas.

         — Infelizmente – ele respondeu – ninguém pode entrar. Só com  ordem da construtora.

         Olho para o lado, na calçada da rua, e vejo que a imensa mangueira, mais de 100 anos, que se erguia diante da “janela da frente”, ali continuava, impávida e colosso. Vou a ela, dou um beijo no tronco, retorno ao táxi e procuro velho bar conhecido.

         — Um scotch – peço ao garçon.

         — Puro?

         — Não, é muito forte – respondo – e isso é ruim para sonhos destruídos. Me dá com gelo, quero apenas dissolver algumas pobres ilusões.

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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