a arte de perder eleições

A arte de perder eleições… Sempre tiro o chapéu para os vitoriosos e respeito as decisões majoritárias. Mas esse é meu limite. Nem sempre as considero acertadas apenas por ser majoritárias. Alemães e italianos já se equivocaram, com mais entusiasmo…
a arte de perder eleições
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM
O GLOBO E NO SITE DO AUTOR,
www.gabeira.com.br, 18 DE NOVEMBRO DE 2024

Eu já deveria ter esquecido as eleições nos Estados Unidos. Torci por Kamala Harris, perdi. Perdi eleições municipais, estaduais e federais. Uma fora do Brasil não é nada. Se houver algo em Marte, farei minha aposta.

A energia inicial, milhões de dólares arrecadados entre pequenos doadores, me impressionou. Pensei que a alegria da campanha e seu olhar para o futuro bastariam. Hoje, percebo que havia uma raiva e uma frustração que o otimismo superficial não resolve. Trump interpretou bem, venceu.

Sempre tiro o chapéu para os vitoriosos e respeito as decisões majoritárias. Mas esse é meu limite. Nem sempre as considero acertadas apenas por ser majoritárias. Alemães e italianos já se equivocaram, com mais entusiasmo.

Não consigo entender como racional uma proposta de deportação em massa. Não só porque será difícil e mais caro substituir essa mão de obra com americanos natos. A ideia de Trump de expulsar imigrantes e mesmo a de Giorgia Meloni, de confiná-los num outro país, não resolvem.

Tangidos por fome, guerras e desastres naturais, milhões continuarão a arriscar suas vidas em busca de oportunidades. O capitalismo garante liberdade para o fluxo de capitais e mercadorias, mas bloqueia a mão de obra. É uma negação de suas bases econômicas. Veremos parte da humanidade tentando escapar; outra, de certa forma, lançando-a ao mar.

Vivemos o ano mais quente da História. A temperatura media já é de 1,5 °C mais alta que a do período pré-industrial. Por que negar tantas evidências, sobretudo num país atingido por furacões cada vez mais fortes, do Katrina ao Milton? Nesse contexto, o slogan drill baby, drill (perfure, querido, perfure) — cavar para buscar petróleo entre as pedras — é uma forma simbólica de cavar a própria sepultura.

A própria ideia de taxar importações, de se fechar, de certa maneira, para o comércio internacional parece sedutora, supõe uma idade de ouro da indústria americana. Mas, na verdade, pode encarecer e dificultar a vida dos americanos. É um tipo de visão que favorece o avanço do grande competidor que é a China. Os chineses se prepararam com visão de longo prazo.

Darei apenas um exemplo: em 2007, eles compraram uma montanha no Peru, o Monte Toromocho. Ele continha 2 bilhões de toneladas de cobre. Nesta semana, a China inaugura um porto gigantesco a 80 quilômetros de Lima. Eles se preparam para dominar as commodities desde o início do século e agora constroem a Nova Rota da Seda. Se abstrairmos o regime político autoritário, os chineses parecem incluir o planeta em sua estratégia, enquanto os Estados Unidos tendem a se fechar numa política isolacionista.

Tudo isso ainda são impressões iniciais. Teremos ainda um longo caminho, e a imprensa americana será uma espécie de termômetro para medir a experiência renovada de Trump. É uma imprensa que, de modo geral, também apostou em Kamala Harris e vive sob grande pressão da direita. Ela pode ter cometido erros, subestimado a frustração popular, mas ainda é uma indústria que gasta parte do dinheiro apurando e confirmando a veracidade das informações. Por mais que seja atacada, a verdade é que é explorada pelas plataformas eletrônicas, que reproduzem seu trabalho sem remunerá-lo.

As suposições de que é possível informar sem apurar e confirmar, de que há uma liberdade ilimitada e de que realidades paralelas têm o mesmo valor dos fatos verificáveis servem apenas para aumentar a confusão e turvar o debate político.

Assim como na pandemia, abre-se um período em que o papel da imprensa americana será essencial ao lado da ciência, que se defrontará com uma grande onda de negacionismo, das mudanças climáticas à importância das vacinas.

Em síntese, a derrota sempre nos leva à humildade de reconhecer erros, reformular caminhos. Nem sempre os vencedores detêm outra verdade, além da verdade de que são os vencedores.

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1 thought on “A arte de perder eleições. Por Fernando Gabeira

  1. A eleição americana tem alguns defeitos inceitáveis a mim como o fato de que a cada eleição os vencedores, em alguns estados, podem redesenhar as zonas eleitorais, como chamamos, de forma a que seja mais conveniente a si, e eu reclamo de eleições no Brasil, imagina; o não ter uma regra nacional nem autoridade central para dirrimir dúvidas é outro; permitir a compra de voto disfarçada como munsk fez, impossível (ah houvesse lá um Xandão, veríamos milionário na cadeia, coisa rara). Mas o que mais assusta, e impressiona, é como tratam os distritos eleitorais, mensagens não são enviadas para todo o país mas para um distrito cujos eleitores criam “ovelhas de lã azul” e outra mensagem, apenas parecida, será enviada para eleitors criadores de “ovelhas de lã rosa”, parecem igual mas não são. Em toda e qualquer eleição em todo e qualquer lugar, deveria ser proibido o envio de mensagens para grupos específicos orientadas, ou não por IA, pois se fossem enviados a todos os criadores de ovelhas os que criam “ovelhas de lã amarela” poderiam, legitimamente, reclamar do que se promete aos azul e rosa, mas sem saber como pretendem tratar estes que se parecem iguais, sem ser, não há como reclamar. E tramp utilizou esta técnica de dividir para conquistar, o preço de ser permitido isto veremos, mas não acho que será barato.
    Quanto aos erros alemão e italiano, realmente acredito que os “lída” (recuso-me a chamá-los de outro jeito) eram mais inteligentes; o que acha você?

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