Se Deus existe… Por Dagoberto Alves de Almeida
Se Deus existe…A religião vende a premissa de que o devoto por meio dela está em conexão íntima com o divino criador do universo que o faz especial perante todos os demais. Todas as religiões em menor ou maior grau se baseiam nesse pressuposto…
Bem sei como é difícil uma argumentação baseada na racionalidade quando o tema é religião, artigo de fé e, consequentemente, da dificuldade em provocar reflexões e até rever posições. Ainda assim, vale o risco com o alerta de que não é, em absoluto, minha intenção ofender o leitor que encontra consolo na religião, em especial aqueles que genuinamente procuram uma filosofia de vida que os faça melhores na busca por algum sentido perante os absurdos dessa vida.
Lamento, entretanto, que ao fazê-lo tais pessoas fragilizadas em sua credulidade e desamparo acabem por se tornarem vítimas fáceis de inescrupulosos que não se avexam em usar a religião para conseguir vantagens para si próprios, sejam elas de poder, controle e pecuniárias, geralmente cobradas em dízimos que pouco ou nenhum benefício trazem ao rebanho a não ser manter um portentoso padrão de vida para esses fariseus oportunistas. Portanto, não se sintam ofendidos quando afirmo que quanto mais vivo mais me convenço da equivocada e maléfica influência que a religião tem exercido sobre a humanidade.
A religião vende a premissa de que o devoto por meio dela está em conexão íntima com o divino criador do universo que o faz especial perante todos os demais. Todas as religiões em menor ou maior grau se baseiam nesse pressuposto. Então, não é de se estranhar que a maior parte dos conflitos humanos – fato histórico – tenham como cerne essa crença que em vez de unir divide, pois que pratica a intolerância: só a minha é melhor; sou melhor que você; pago o dizimo e trato bem os que comungam da minha crença; minha contabilidade com o divino está positiva; vou me dar bem depois desta vida em que sigo fielmente o que os meus líderes religiosos me ditam; vou pro paraíso e você vai queimar no fogo eterno e você merece, infiel que é; blá, blá, blá,…
Crença, como o próprio nome diz, não é objeto de racionalização, apenas de passiva aceitação. Eu de minha parte fico imaginando que se Deus existe mesmo seria muito mais interessante para ele ver suas criações florescendo, se desenvolvendo e aprimorando do que ficar julgando uns e outros sob a pecha de que este não acredita em MIM, não ME adora o suficiente e que diverge da MINHA religião, que é a única e, portanto, não pode haver tolerância para com outras formas de espiritualidade, ditas infiéis. Nesse ponto de vista, o hinduísmo, budismo, islamismo e as várias partições do cristianismo, inclusive de seitas que exploram dízimos, não encontrariam guarita na intolerância dogmática do monoteísmo.
Na minha singela posição, a religião é nada mais do que a filha bastarda da filosofia em sua concepção simplista, rasteira, covarde e hipócrita. Não é por acaso que os maiores crápulas da história sempre se apoiaram na religião pra controlar e abusar da população crédula. Vejam as barbaridades que atentam contra o mais básico humanismo que permeiam páginas e páginas tanto na Bíblia hebraica e mesmo naquela que veio com o catolicismo instituído como religião oficial pelo Imperador Constantino no século IV.
E não podia ser diferente – criação que é de indivíduos e grupos ao longo da história a religião registra as contradições de uma época e de uma cultura. Sua dialética (conhecimento por meio da argumentação) é uma contradição na medida em que não aceita questionamentos. Na melhor das hipóteses a religião, como criação dos homens, é um instrumento tosco que permite a seus adeptos encontrarem algum alento perante tanta perversidade e injustiça. Para tanto o homem criou Deus à sua imagem e semelhança. Vale salientar que por esta frase eu seria, indubitavelmente, queimado nas fogueiras da “Santa” Inquisição que, estima-se, apenas na Espanha a Inquisição tenha queimado na fogueira cerca de 300 mil vítimas.
Afora as clássicas atrocidades ao longo da história em que a religião teve papel central e explicito como as guerras da antiguidade registradas na própria Bíblia do velho testamento, há que citar as Cruzadas e a Inquisição, assim como as guerras entre católicos e protestantes na Europa dos séculos 16, 17 e 18 que ceifaram milhares de vidas de cristãos de facções diferentes. Vejam bem, eram todos cristãos se matando uns aos outros por conta de interpretações diversas de passagens da Bíblia… E tal intolerância violenta não é cativa do cristianismo haja vista a guerra fomentada entre os islamistas da facção Xiita do Irã e contra os Sunitas do Iraque na década de oitenta. Claro, mais uma manipulação econômica neocolonialista tirando partido para si dos ódios religiosos entre povos que teoricamente advogam a mesma fé. Povos que tem a infelicidade de terem como governantes indivíduos que preferem apostar mais nas diferenças entre si do que nas semelhanças.
Direta ou indiretamente a religião, como veículo de crenças, sempre teve papel expressivo em fomentar desavenças e guerras, produto que é das contradições humanas. Senão vejamos algumas estimativas de três genocídios perpetrados aparentemente aparte da religião no século XX. A Revolução Comunista na Rússia, o exercício do comunismo na China e o flagelo nazista na segunda guerra mundial atestam a extrema perversidade a que o ser humano é levado pela política de ódio engendrada por populistas cruéis:
A revolução Russa: de 200 mil até 1,3 milhões de pessoas em toda sua extensão, considerando os expurgos impostos por Stalin nos Gulags da Sibéria;
A segunda guerra mundial com o holocausto praticado pelos Nazistas de Hitler que levou ao extermínio cerca de 6 milhões de judeus e outros grupos como ciganos, homossexuais e deficientes físicos/mentais;
Na desastrosa revolução cultural de Mao Tse Tung (A Grande Virada) estima-se que centenas de milhares até 20 milhões de pessoas pereceram na destruição cultural e econômica engendrada por este ditador.
E se morreram mais gente no século XX do que ao longo da história pregressa é simplesmente porque a população aumentou e não porque nos tornamos piores. Continuamos os mesmos apesar do desenvolvimento científico, só amplificamos nosso potencial de destruição como demonstra duas bombas atômicas terem sido despejadas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki.
Voltando às revoluções ideológicas do século XX e à Segunda Guerra Mundial vale atentar que no caso do comunismo Chinês e Russo a mortandade se deu como oposição ao regime capitalista de outras culturas nas quais a religião é livremente exercitada. Desta forma, essas atrocidades também visavam extirpar a religião. Curiosamente, o ser humano precisa adorar algo como caso do comunismo em que a adoração de santos foi substituída pelo culto à personalidade dos líderes revolucionários. Anos atrás observei espantado a imensa multidão que lotava, em êxtase, pacientemente à espera da vez para vislumbrar os restos mortais de Mao Tse Tung na Praça Tiannamen em Pequim. Reverencia-se o ditador, mas não o jovem, cujo nome não se sabe, que ousadamente tentou parar os tanques nesta mesma praça, ironicamente chamada de Praça da Paz Celestial.
No caso das atrocidades do nazifascismo a religião também esteve presente como pretexto para o genocídio do povo hebreu detentores de uma cultura profundamente calcada em tradições religiosas. Claro que neste caso estava a seleção de um grupo afluente para ser o alvo do ódio do populacho fanatizado. Aliás, em menor escala essa política de fomentar o ódio tem acontecido no Brasil com Bolsonaro contra quem é da esquerda e de Trump nos EUA – um país de imigrantes – contra os imigrantes ilegais. Além do que é preciso que se atente que o histórico conflito entre árabes e israelenses com seu ranço religioso a legitimar a perda de vidas que só faz escalonar. Surrada, esta pífia narrativa continua fazendo escola, haja vista que a grande massa de simplórios continua caindo nessa prosa rasa aos borbotões.
Assim, grosseiramente, há os bons e uma grande massa de indiferentes aptas a seguir os ditames de uma gama de perversos que de tudo faz para obter e se encastelar no poder. Sugiro pra quem se interesse pelo tema que leia Hannah Arendt sobre o que a maioria de nós é capaz quando, ressentida, se deixa manipular por líderes autocráticos frequentemente validados pela religião.
O observador menos desatento há que admitir que a civilização é mais produto da regras éticas e legais das instituições criadas pelo poder temporal do que da religião. Se na antiguidade estado e religião se confundiam o retorno a esse arranjo na atualidade, como advogam os neofascistas, implica em fragoroso retrocesso civilizatório. Tal destruição das conquistas humanísticas da civilização moderna é particularmente engendrada nas teocracias atuais, particularmente mulçumanas, com sua notória crueldade para com suas populações, notadamente mulheres e minorias, sejam elas de gênero, etnia ou classe como ocorre no Irã dos Aiatolás.
Eu, da minha parte, apenas entendo ser altamente improvável que uma inteligência divina, criadora do universo esteja atenta aos nossos mínimos atos para nos premiar ou punir. Segundo o melhor de minha capacidade de racionalização considero improvável uma inteligência suprema, fonte de toda a bondade que simplesmente assiste impassível à extrema perversidade de uns contra os outros. Ah, mas depois desta vida essas pessoas sofridas, exploradas e vilipendiadas receberão o reino dos céus. Sei…, só na base da crença para acreditar nessa narrativa. Ora, se nem eu na minha imperfeição admito que os animais de criação de minha chácara sejam maltratados, se ataquem, passem fome ou privações, quem dirá Deus em sua onipotência e benevolência para conosco que somos o “ápice de sua criação” …
A estratégia utilizada pelas religiões para esse avanço exponencial está em colocar o crente na posição de ungido, o auge da criação divina, o mais bem amado dentre todas as criações deste universo. O fato é que a religião continua mais forte nesse planeta tão disfuncional que, graças aos avanços tecnológicos, potencializa o risco da própria existência do homo sapiens. No entanto, a ciência é também instrumento para avaliarmos o contexto de criação divina em um universo do qual somos uma parte infinitamente pequena.
A grandiosidade infinita do universo demonstra nossa arrogância e ignorância. Todavia, é mais fácil eliminar essa última com estudo e pesquisa do que a arrogância garantida pela comodidade de ser considerado especial, vitimizado e mimado, pedindo e se lamuriando, incomodando os ouvidos de um deus inexistente… A igreja, canal único da relação do divino com o mundano, prefere essa infantilização de rebanho ao questionamento baseado na curiosidade viabilizada pela ciência perante o papel do ser humano neste belo planeta que vem morrendo graças aos abusos ambientais de que é alvo.
Desde há muito a ciência mostra que não somos o centro da criação, não somos o centro do universo. Ao longo desses séculos a ciência – intrinsicamente baseada no questionamento – demonstra que não é nosso Sol, nem o nosso sistema solar que compõem o universo. A imagem em anexo ilustra o superaglomerado de 100.000 galáxias que fazem parte do universo até agora conhecido, a Laniakea. Só a nossa galáxia, a Via Láctea, abriga cerca de 300 bilhões de estrelas. Ora, se Deus nos criou então ele deve estar muito orgulhoso das conquistas de sua criação, visto que nos deu a engenhosidade para descobrir e criar. De fato, essa imagem do universo conhecido demostra nossa pequenez perante esse universo de infinitas galáxias com bilhões de estrelas em cada uma e outros tantos sistemas solares que, mesmo que uma ínfima parte dos planetas contenham a possibilidade de vida inteligente, ainda assim a ciência estima que seriam números absolutamente imensos. Consequentemente, considero mais plausível termos sido criados e aprimorados por inteligências de civilizações altamente desenvolvidas que existem simplesmente porque não se dizimaram, porque foram mais bondosas que perversas, uma vez que a perversidade em seu extremo não se sustenta, uma vez que a longo prazo se autodestrói.
O filósofo Bertrand Russell defendeu a tese de que a religião infantiliza o homem na medida em que ela o impede de questionar, visto que ela não é baseada na crença, mas também por se basear no medo que é “o pai da crueldade.” Segundo esse renomado filósofo, matemático, ensaísta e historiador que viveu no século passado, não é uma surpresa, então, que a crueldade e a religião tenham sempre andado de mãos dadas, como sobejamente comprova a história. Obviamente, Bertrand Russell ser considerado persona non grata pelos donos da religião é algo esperado; é assim que as coisas são no terreno das ideias: quando ameaçam algum status quo, além de não serem aceitas são atacadas e isso é faz parte de um jogo tóxico cujo ganhador é quem, na prática, tem mais aceitação e adeptos ao longo do tempo. E a religião, mesmo nesse tempo de conquistas científicas e tecnológicas sem precedentes, vem ganhando de lavada. Mas Russell não é o único a caminhar nessa seara. Há outros, até mais impactantes, como Habermas, Nietzsche e Schopenhauer, ou mesmo filósofos brasileiros como Pondé e Carnal que veem na religião uma força mais destrutiva do que construtiva, na medida em que a religião é uma metodologia criada por seres humanos para se legitimar e controlar os demais. Sim, a religião é o mais eficaz meio que existe para controle de grandes massas populacionais, pois que não aceita oposição e vai às últimas instâncias para destruir aqueles que a ela se opõem. A reação da igreja hegemônica no início da Era Moderna foi tão violenta à heresia do conhecimento obtido pelo esforço humano que ela chegou ao ponto de assassinar Giordano Bruno e encarcerar Galileu Galilei por advogarem a Teoria do Heliocentrismo, no qual o sol e não a Terra era o centro do universo então conhecido.
A real constatação de que o nosso estágio civilizatório não se resume apenas ao transcendental, dito espiritual — aquele instrumento que supostamente nos faria mais empáticos em relação aos nossos semelhantes — ainda está longe de se tornar uma realidade. Da mesma forma, apenas o desenvolvimento intelectual por meio da ciência instrumentalizada em tecnologia não é suficiente para que nossa espécie possa continuar existindo. A título de exemplo, a Rússia com 5.977 ogivas nucleares e os Estados Unidos com 5.550 são capazes de conjuntamente destruir a Terra em cerca de 16 vezes.
A união do emocional com o intelectual é algo que vai além da abordagem defendida por todas as religiões de absoluta e intransigente crença travestida na bela palavra fé. Conceito este que deveria significar ação para crescimento individual e coletivo no respeito mútuo a toda forma de vida. Em tese, não há que haver um antagonismo entre a ciência e o anseio do ser humano pelo transcendental.
O ideário das religiões infantiliza seus seguidores. Tosca e rasa em seu objetivo de escrachadamente arrebanhar a maior quantidade possível daqueles que se privam da heresia de questionar para melhor compreender e entender a si e ao mundo que as cerca. Desta forma, a religião com todas as suas diferentes igrejas, seitas e denominações impede a humanidade de avançar para um novo estágio civilizatório capaz de combinar o intelectual com o emocional, da ciência com a empatia para se opor a um arranjo nefasto que compromete a própria existência do ser humano. O conhecimento que se cria e se aprimora para o bem da humanidade e do respeito à natureza pode ser o sentido da vida, pois que juntos aprendemos a ser melhores emocional e intelectualmente e isso deveria ser suficiente.
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– Professor Dagoberto Alves de Almeida – Professor Titular em Gestão da Produção – UNIFEI. Reitor eleito e indicado da UNIFEI nos mandatos 2013-16 e 2017-20
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