Sacralização da mudança climática. Por Aylê-Salassiê Quintão
Sacralização …Para os não religiosos e oportunistas, sagrado mesmo é o sonhado fundo trilionário do clima…
A busca angustiosa de soluções para mitigar o impacto do aquecimento global, que já passou pela ciência, pela economia, por ações pontuais de governos, está sendo introduzida agora também no espaço da religiosidade. No Japão, uma freira católica, Agnes Katsuko Sasagawa, que, nos anos de 1970, na cidade de Akita, fazia previsões catastróficas de eventos que vieram a acontecer, está ganhando milhares de seguidores, ao condenar a violência, a injustiça social e as guerras insensatas. Agora começou a advertir sobre as questões climáticas e o papel da Amazônia para atenuar o problema.
É intrigante: a gente não sabe se chora ou se acha graça. Recebe ela, segundo a própria, orientações espirituais de uma pequena estátua (de madeira) de Maria, mãe de Jesus, existente na igreja local, da qual verte ou vertia sangue e lágrimas. Nas suas advertências, Sasagawa relata genericamente, como no Apocalipse e até em Nostradamus, as possibilidades dos desastres naturais, das crises sociais, e dos conflitos inesperados entre países tornarem-se ainda mais frequentes com o colapso espiritual da humanidade.
Esse distanciamento do sagrado que, para a religiosa, estaria associado à vida no universo, enfraquece os laços entre humanos, interrompendo esforços pela convivência saudável e pacífica. Os efeitos desastrosos são logo sentidos no mundo natural, com a destruição ambiental. Cita especificamente o Brasil. Considera a Amazônia um privilégio atribuído aos brasileiros pelas deidades universais.
Reconhece Sasagawa que os humanos estão “correndo atrás”, mas, ambiguamente: enquanto alguns se esforçam solidariamente para conservar e proteger os recursos da natureza, outros destroem levianamente as pequenas oportunidades de amenizar os desafios e ameaças das mudanças climáticas à sobrevivência da humanidade, adotando modelos, iniciativas predatórias dos recursos e comportamentos erráticos. Para os oportunistas, nas reuniões preparatórias da COP-30, que acontecerá em 2025, em Belém, o tema de destaque não será a emissão de gases-estufa, mas o tal fundo do clima que, pretende-se, seja iniciado com doações internacionais da ordem de US$ 20 trilhões, e chegue a R$ 60 trilhões.
E, assim, com a atenção concentrada no fundo trilionário, como uma panaceia, os governos e a sociedade vão perdendo o contato com o sagrado, e naturalizando episódios desastrosos para a vida no planeta como as inundações no Rio Grande do Sul e na Espanha, a seca no rio Amazonas, os vulcões e maremotos, a insana invasão da Ucrânia, em que já morreram mais de 50 mil civis e foram destruídos milhares de hectares de terras produtoras de alimentos. Ninguém consegue também apaziguar as desavenças entre populações irmãs no Sudão, cujo conflito tem gerado milhares de desabrigados, mortos, crianças famintas como resultado da destruição de áreas agrícolas produtivas.
As gestões laicas, instáveis e inconsequentes no uso dos recursos naturais pela sociedade, conforme a freira Sasagawa, acarreta prejuízos humanos e planetários. O IBGE detectou 120 favelas em cidades brasileiras abrigando juntas 16,3 milhões de pessoas. Nos centros de São Paulo e do Rio de Janeiro existem 150 mil pessoas vivendo em favelas e nas ruas. Uma única favela em Brasília (Sol Nascente), a 20 km da praça dos Três Poderes, reúne 70 mil pessoas. São 16 milhões de invisíveis, que, sem um solo para se instalar, destroem e ocupam biomas do cerrado, matas nativas, terras produtivas. Vivem em estado de pobreza quase absoluta. Total abandono. Manaus e Belém (cerca de 200 mil favelados), justamente as que mais devem atrair participantes para a COP-30, e o Amapá, são lembradas como capturadas não apenas pela penúria, mas ainda pela transgressão.
Essas populações abandonadas pelas políticas públicas e que se alimentam uma vez por dia convivem no cotidiano com grupos criminosos, traficantes de drogas e milícias profissionais a serviço a indivíduos explicitamente predadores dos recursos florestais e minerais descompromissados com a sua proteção. Esse estado de coisas, acompanhado de uma violência aberta, banalizou-se na vida cotidiana dessas comunidades, gerando a indiferença pública e privada.
Nos centros urbanos, que congregam mais de 60 por cento da população do mundo, o modelo industrial vulgarizou a emissão de gases poluentes destruidores da camada de ozônio que envolve a terra, e a classe média tornou o desperdício de recursos um fato corriqueiro. Isso tudo leva a destruição de áreas naturais e agricultáveis sinalizando para fomes futuras. Efeitos desestabilizadores das condições climáticas no planeta não se inibem diante de tratados e acordos, seja nos Estados Unidos, China, Brasil, Rússia, Alemanha, Grã Bretanha. O modelo predatório de que fala a freira Sasagawa tem muitas faces.
À espera da COP-30, são realizados encontros e feitas discussões prévias sobre a transição energética – dos combustíveis fósseis aos bio combustíveis – caminhando desafiadoramente na contramão dos usos, costumes e produtos da sociedade atual, e dos interesses petrolíferos no mundo (um Oriente Médio inteiro, Rússia e outros). Até parece que esses encontros do clima não estão sendo conduzidos por quem entende do assunto. A discussão ambiental é residual ou usada para se sonhar com dezenas de fundos ambientais, que geram muitos empregos e poucos resultados claros.
Daqui até novembro do próximo ano o tema COP-30 será a panaceia para a ingovernabilidade e a justificativa para omissões ambientais e sociais. Para os não religiosos e oportunistas, sagrado mesmo é o sonhado fundo trilionário do clima. Pesquisa do Datafolha revelou que 46% dos municípios brasileiros ignoram a crise climática, não sabem sequer do que se trata. Segundo Max Weber, para os protestantes, “Time is money“.
Como o Brasil é um país católico, vamos seguir a freira Sasagawa, mas ouvir o Papa Francisco, que é adepto de Santo Agostinho, um religioso ambientalista.
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Aylê-Salassié F. Quintão – Jornalista, professor, doutor em História Cultural, ex-guarda florestal do Parque Nacional de Brasília Vive em Brasília. Autor de “Pinguela: a maldição do Vice”. Brasília: Otimismo, 2018
Parabéns pela excelente descrição dos nossos problemas sociais e ambientais . Obrigado pela reflexão induzida.