Faz calor. Derretemos. Tempo seco, não dá para respirar. Se chove nos afogamos nas ruas alagadas, paramos nos faróis imediatamente intermitentes, amarelos piscantes se é que ainda haverá o amarelo, se é que haverá luz para piscar, se haverá guarda, se der para passar pelo cruzamento. A cidade engole um pouco da gente todo dia. São Paulo até lambe os beiços
São Paulo se alimenta de gente, da gente. Todo dia nos consome um pouco mais, e aqui não tem praia, vista bonita, nem como ver pôr do Sol de cima de alguma pedra, batendo palmas – até dá, mas é preciso improvisar muito. Aqui isso tudo é na hora do rush, da tortura do dia a dia das pessoas que o tempo inteiro estão indo de um lado a outro, cruzando suas linhas mal planejadas que opõem os locais de trabalho dos locais de moradia, que por sua vez se opõem aos locais de estudos, de lazer, e até de fé, que agora se processa em campos enormes, abertos, templos faraônicos.
Tudo é grande, megalopólico (saiu assim a palavra). Megalopólico. Uma engrenagem que somos nós que engraxamos, numa relação luxuriosa e antropofágica, permissividade e controle, numa dualidade que poucos lugares, creio, possam oferecer. São Paulo é uma cidade-país, que tem tudo de monte. Nos gabamos do que temos e não conhecemos, apenas respiramos, depois pensando de onde saem tantos tipos que aparecem para nos surpreender e contar suas histórias.
Aqui se anda desviando. De coisas jogadas pela janela. Dos cocôs da artilharia de pombos que vêm do céu; do cocô dos cachorros, como casca de bananas. Das balas perdidas. Dos malucos bêbados na direção das máquinas. Nos desviamos das árvores maltratadas que deixam seus pedaços cair para ver se chamam a atenção antes de desmaiar e cair inteiras, deitadas no solo, exaustas, cansadas de servir como escora para lixo, óleo, tudo o que jogam aos seus pés, impunes. Tenho sempre a impressão de que aqui são detestadas.
A cidade limpa se suja. São ofertas de milagres, trabalhos amorosos, feitiçarias anunciadas em faixas em postes e cada vez mais ousadas em suas propostas. Anjo do amor, feiticeiro da felicidade. Pai Xavier, Mãe Benta do Nhocuné. Buscam incautos. Outros magrelos se juntam aos bandos, cada qual vindo de uma região para um desafio mortal, fazem piruetas para subir em prédios e rabiscar gigantescos sinais incompreensíveis. Às vezes se distraem, caem e morrem estatelados no asfalto, lamentados por alguns momentos, esquecidos rapidamente porque aqui nunca ninguém viu ou sabe de nada, pode perguntar. Ninguém viu. Não sabe de nada. Não quer se comprometer, me tira fora dessa. Eu só estava passando. Sim, ouvi uns gritos, mas achei que era alguma festa.
Mas também aqui chegam os artistas com tintas coloridas, latas de aerossóis, ideias na cabeça, poesia concreta. Procuram muros, esquinas, cantos. E pintam seus personagens. Colam adesivos. Agora também carimbam o chão de algumas vias. Invisíveis, certamente nas madrugadas agitadas, vão deixando recados que no dia seguinte nos farão refletir melhor quando com eles nos depararmos. Mais amor por favor.
Tenha paciência com eles. São protestos de tudo. São diários e congestionam as vias, bloqueiam as passagens, irritam quem não os integra e que naquela hora queria só estar bem longe dali. Atrás deles, dos protestos, agora também as bombas, as cacetadas, o perigo do grupo anarquista mascarado de jovens que consideram que nada lhes foi dado e que, portanto, não têm nada a perder, meninos piratas que não querem crescer e se acham heróis da luta já perdida. Batem bumbo, sem noção.
Ah, tanto falam, tanto tentam humanizar essa cidade que não notam que ela já é a mais humana de todas, principalmente nas nossas maiores imperfeições. Cidade egoísta, cheia de ciúme de outras, e em suas ruas cada vez mais se estendem corpos cansados como as árvores, e que se camuflam como o lixo em residências imaginárias, de sacos pretos, de papelões.
São Paulo, 462 anos de vida. Parabéns. Você é o espelho desse país, desse momento agoniante que vivemos, no mato sem cachorro, na crise que te abarrota de placas de Aluga-se, Vende-se, Passa-se o Ponto. Zonas sujeitas a alagamento. Focos de mosquito. Proliferação de escorpiões. Mapas de violência. Pontos negros. Perigo de assaltos. Cuidado ao atravessar.
Vamos soprar suas velas.
Daqui, 2016.
Marli Gonçalves é jornalista – Desta cidade de idade, da qual se espera tudo e de onde menos se espera é que não vem nada mesmo.