Ronaldo, o trompetista

Ronaldo, o trompetista. Por Paulo Renato Coelho Netto

… Ronaldo, nosso trompetista, era um gigante com aproximadamente 1,60m – para mais ou para menos – conforme a margem de erro das pesquisas.

Ronaldo, o trompetista

Era tão bom no que fazia que até o maestro da Banda Municipal de Campo Grande tinha menos autoridade no grupo quanto o trompetista Ronaldo.

O trompete é um instrumento de sopro extremamente difícil de tocar. Lá no topo da pirâmide, os jazzistas Louis Armstrong e Miles Davis servem de parâmetro sobre a complexidade dessa peça de metal. Não é qualquer um que domina.

Para quem ainda não ligou o nome ao som, o trompete que ilumina a música cubana e enlouquece Olinda e Recife logo nas primeiras notas de Vassourinhas, o frevo brasileiro mais conhecido.

O multi-instrumentista Tim Maia tocava trompete muito bem, som de destaque no início da música Do Leme ao Pontal.

Foi com essa música que Tim Maia convidou Jimmy Cliff para subir ao palco e se unir a ele no Noites Cariocas, um projeto que levava artistas dessa qualidade a se apresentar no Morro da Urca, no Rio de Janeiro. Os shows, históricos, aconteceram no fim da década de 80.

O trompete esteve presente nas duas melhores apresentações que assisti ao vivo. Neste, de Tim Maia e Jimmy Cliff e outra de Hermeto Pascoal, o bruxo genial que toca qualquer coisa, inclusive instrumentos musicais.

Ronaldo, nosso trompetista, era um gigante com aproximadamente 1,60m – para mais ou para menos – conforme a margem de erro das pesquisas.

Além de tocar muito, era um líder de nascença. Desses que naturalmente dominam o ambiente apenas com o carisma. Devia ter pouco mais de 18 anos.

Pelo tanto que aprontávamos, provavelmente nosso maestro Ulysses foi recebido pessoalmente no céu por Deus, todos os anjos e músicos desencarnados da Terra. Merecidamente.

Além de maestro, era um excelente saxofonista. E o mais difícil: ensinava música para crianças, indomáveis adolescentes e jovens.

Idoso, mestre Ulysses, como também era chamado, podia quebrar a batuta na partitura que a gente, nem sempre, atendia quando ele tentava colocar ordem no conservatório.

Bastava o Ronaldo falar chega que a música voltava ao patamar de prioridade.

Não era um ambiente para os fracos. Muitos tentaram entrar e desistiram da bandinha em nome da autopreservação.

Estava mais para um programa de tentativa de reabilitação social do que, propriamente, uma banda de música.

O que esperar encontrar em um lugar onde havia gente que atendia feliz pelos apelidos de jacaré, jacarezinho, ki-saco, gordo-alberto, louva-a-deus e areia-mijada, esse último pelas marcas de espinha no rosto todo?

O jacaré passou a ser chamado dessa forma logo ao sorrir pela primeira vez no conservatório. Tinha tantos dentes na enorme boca quanto a do seu colega pantaneiro de papo amarelo. Era também um falante compulsivo, andava rápido, gesticulava e gargalhava sem parar. Para piorar, sua voz saía também pelo nariz.

O jacarezinho se tornou uma espécie de fã, seguidor e melhor amigo do jacaré e assim foi batizado. Um tipo de personalidade fraca e submisso que se deixou influenciar por um aprendiz de sociopata adolescente.

Na linha selvagem havia o louva-a-deus, um menino magro como o inseto que raramente sorria.

Delicado e educado, Mário ganhou o apelido de marieta.

O cara de areia mijada tocava o bumbo em uma das laterais da banda. Sua especialidade era girar as baquetas no ar passando a milímetros do rosto de quem estava na calçada. Nunca acertou ninguém. Provavelmente tinha algum transtorno de personalidade antissocial.

Que tipo de gente colocaria uma pedra enorme dentro de uma caixa de papelão, na calçada, só para ver alguém chutar e machucar o pé ou cair de bicicleta ao tentar passar por cima? O tipo ideal da banda.

Que tipo de gente era aquela que tinha habilidades para ligar um trator estacionado pelo motorista, e deixado à noite ao lado do conservatório, como se fosse um lugar seguro para ficar?

Que tipo de gente viajava para representar o município, se apresentava durante o dia e tomava banho sem roupa à noite na piscina na casa de algum amigo de um amigo de um amigo que morava na cidade?

O auge era ver o gordo-alberto, irmão do banana, se jogar com tudo na água para ela subir com o efeito de uma bomba no mar.

Viajávamos de ônibus fretado e trem várias vezes ao ano.

Os ensaios eram à noite, às segundas, quartas e sextas-feiras. Quem não chegava a pé ia de bicicleta, um meio de transporte sem marcha, feito de ferro praticamente maciço que usávamos para tudo na década de 70.

Tocamos em desfiles cívicos, estádios, inauguração de escolas, abertura de jogos e campeonatos esportivos.

Tocamos nas festividades da divisão do Estado de Mato Grosso, que deu origem a Mato Grosso do Sul, no dia 11 de outubro de 1977.

Éramos um bando e uma banda ao mesmo tempo.

Ninguém errava uma nota, um passo sequer. Algo acontecia durante as apresentações que cada um fazia o seu melhor. Por onde passávamos o povo aplaudia.

Uma banda de música, com dezenas de instrumentos diferentes, exige um grau de disciplina e complexidade incomuns. É como uma orquestra, com as devidas proporções. A diferença é que, além de tocar, a banda tem que marchar sob sol, chuva, frio e calor.

Cada integrante começava estudando o Bona sozinho, livro de teoria musical e solfejo. Depois, ainda sem se integrar aos demais, tinha contato com um instrumento. Só lá na frente se juntaria aos veteranos.

A música nos unia.

Se cada criança nas comunidades deste país desigual ganhasse um violino, no lugar de uma AK-47, o Brasil estaria bem melhor.

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Instagram: @paulorenatocoelhonetto

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paulo rena

Paulo Renato Coelho Netto –  é jornalista, pós-graduado em Marketing. Tem reportagens publicadas nas Revistas Piauí, Época e Veja digital; nos sites UOL/Piauí/Folha de S.Paulo, O GLOBO, CLAUDIA/Abril, Observatório da Imprensa e VICE Brasil. Foi repórter nos jornais Gazeta Mercantil e Diário do Grande ABC. É autor de sete livros, entre os quais biografias e “2020 O Ano Que Não Existiu – A Pandemia de verde e amarelo”. Vive em Campo Grande.

 

capa - livro Paulo Renato

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