Eles sairão da prisão um dia. Por Antonio Cláudio Mariz de Oliveira
Eles sairão… A sociedade precisa contribuir para que o egresso do sistema prisional não se torne um vingador implacável…
PUBLICADO ORIGINALMENTE NO ESTADÃO, ESPAÇO ABERTO, EDIÇÃO DE 31 DE OUTUBRO DE 2024
Li surpreso que tramita no Congresso Nacional um projeto de lei ampliando os critérios para a decretação de prisões preventivas. O seu autor é o ministro Flávio Dino.
Não haveria nenhuma estranheza se as inovações fossem tendentes a confirmar o caráter excepcional do encarceramento provisório, dificultando-o. Haveria coerência com o princípio constitucional da presunção de inocência.
Pergunto se o ocupante da Suprema Corte deixou-se influenciar pela cultura punitiva hoje reinante. Será que ele é dos que entendem ser a prisão a panaceia para os males da criminalidade? Ele crê não haver outra resposta para o crime a não ser o encarceramento?
Tenho certeza que o ministro Flávio Dino não integra a corrente daqueles voltados para o populismo penal. No entanto, o senador…
Temo que, tal como a corrente punitivista, ele esteja olvidando o quanto é inócua a repressão pura e simples como meio de diminuir os índices de criminalidade. Infelizmente está arraigada na consciência social que o delito se combate com o rigor penal, leis e penas mais graves. A prova provada dessa falácia é que quanto mais se prende mais crime acontece. O Brasil conta com aproximadamente 650 mil presos, e as prisões continuam a ser efetuadas, mas nem por isso os níveis de delinquência diminuem.
Em face dos trágicos incêndios que atingiram o País, a reação das autoridades, inclusive do Judiciário, é a apologia das penas mais altas. Será possível que essa demagogia populista irá continuar por mais tempo? Será que nunca se terá a honestidade para se desmitificar a cadeia como solução? É uma pregação mentirosa, desonesta, enganadora e extremamente nociva à paz social.
Além de se afastar do único caminho eficaz de combate ao crime, que é o enfrentamento das causas da criminalidade, se olvida que o caótico sistema prisional brasileiro se transformou em eficiente fator criminógeno.
Ao lado dessa cultura repressiva e punitiva que a nada conduz, a não ser a maior criminalidade, como se verá, há uma imperdoável e tradicional omissão no que tange às causas do crime. A prisão não o evita pela simples razão de que ela é posterior ao seu cometimento. Caso não se ocupem das causas não se evitará as violações a direitos individuais ou coletivos. E nunca houve uma preocupação das autoridades e da própria sociedade com os fatores desencadeadores do crime.
Como exemplo podemos citar a questão do menor carente. Tivéssemos, na década de 1970, cuidado do menor abandonado, talvez hoje contássemos com um número bem menor de criminosos e chefes de organizações. Passamos a nos preocupar quando os trombadinhas começaram a nos assaltar. Preocupação não em ampará-los, e educá-los, mas apenas em puni-los. As suas necessidades não nos sensibilizavam, nós os queríamos distantes. Um secretário de Segurança chegou a recolher os menores de rua, colocou-os em ônibus e os mandou para a cidade de Camanducaia, em Minas Gerais.
Conhecidos jornalistas, de forma distorcida e nada honesta, mentiram ao dizer que eu neguei a necessidade de punição. Repeti que punir não evita o crime. A punição está na lei, assim, precisa ser aplicada. Mas parem de se enganar dizendo que se está combatendo o crime com o encarceramento.
A gravidade dessa ideologia do cárcere como panaceia para os males do crime é sensivelmente aumentada pelo sistema penitenciário, que não cumpre os seus objetivos de conceder prisões que não afrontem a dignidade dos homens e mulheres que o habitam. Ademais, não os prepara para o retorno à sociedade, com esforços para afastá-los do crime.
Quando não fosse por uma questão de humanismo e de solidariedade, dever-se-ia lembrar que os encarcerados e as encarceradas um dia voltarão ao convívio social.
Todas as carências acumuladas durante o período de aprisionamento vão se introjetando em seu (in)consciente. Carências no campo da saúde; da assistência jurídica; da alimentação, essa absolutamente insuportável; das acomodações, é inacreditável a mínima dimensão por cela para cada preso. Não é preciso falar da higiene, da violência, das organizações criminosas internas, da precariedade do ar, da ausência de lazer e de vários outros fatores de aviltamento do ser humano.
A esse acúmulo de necessidades não supridas soma-se o desprezo da sociedade pelo preso e pelo seu regresso. Na verdade, existem dois muros isolando o sistema penitenciário. Um cerca os presídios e o outro cega a sociedade que nada enxerga, ou diz que não. Basta que se encarcere e pronto. Repito, o homem e a mulher presos sairão um dia.
O Estado por sua vez não cumpre com as suas obrigações muito claras e objetivas expostas na Lei de Execuções Penais. Lei das mais avançadas e completas do mundo. Mas não cumprida. Outro exemplo dos dois Brasis: um legal e outro real.
O Estado precisa deixar de investir só no cárcere e aplicar recursos na liberdade. A sociedade precisa humanizar-se, solidarizar-se e, quando não, por egoísmo, contribuir para que o egresso, em liberdade, não se torne um vingador implacável.
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*Antônio Claudio Mariz de Oliveira é advogado criminalista, da Advocacia Mariz de Oliveira. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Conselheiro no Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e atuou como Secretário de Justiça e Secretário de Segurança Pública de São Paulo nos anos 1990. Foi presidente da AASP e da OAB-SP por duas gestões.