BRIOS

by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense

Por minha conta, fiz um levantamento utilizando o acervo de um jornal centenário para conhecer a evolução do uso do termo “brios”, no plural, que é a forma mais comum. O resultado confirmou minha intuição: a palavra aparece cada vez menos.

BRIOS
by Caio Gomez (1984-), desenhista brasiliense
Artigo publicado no Correio Braziliense e no blogue do autor

 A palavra brio é de origem pré-românica, descendente de uma raiz já implantada na Europa ocidental antes da expansão do Império Romano. Entrou no vocabulário de todas as falas latinas e há muitos séculos está presente em nossa língua. Textos da Idade Média já revelam a existência desse termo – e do conceito que o acompanha.

A frequência com que cada palavra aparece na mídia impressa corresponde a seu uso na linguagem do dia a dia. Por minha conta, fiz um levantamento utilizando o acervo de um jornal centenário para conhecer a evolução do uso do termo “brios”, no plural, que é a forma mais comum. O resultado confirmou minha intuição: a palavra aparece cada vez menos. De 6.000 menções anuais nos anos 1990, baixamos hoje a apenas 500 menções anuais. O termo está se tornando arcaismo.

No tabuleiro político, estas duas últimas décadas vêm sendo marcadas por um embate entre as correntes de extrema direita e os demais cidadãos, os não extremistas. Chamam a isso polarização, termo inadequado. É um embate de que participam, de um lado, militantes agressivos e barulhentos, e, do outro lado, gente mais próxima do modelo tradicional da militância civilizada. A tal polarização se dá entre cidadãos grosseiros e malcriados e cidadãos que ainda conservam a capacidade de se indignar diante de comportamento selvagem.

Venceslau Brás (1868-1966) foi presidente do Brasil durante a Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918. Discreto como convinha à sua época, deixou a política assim que terminou o mandato de presidente. Foi pescar, tranquilo, em sua propriedade das Minas Gerais. A discrição e o afastamento devem ter-lhe feito bem, pois chegou à idade de 98 anos, tendo sobrevivido meio século depois de ter sido presidente – um recorde! Era uma época em que convinha a uma personalidade política ser homem de brios, qualidade muito apreciada.

Décadas depois, a política nacional deu os primeiros sinais de que os brios já não eram qualidades essenciais no homem público. Jânio Quadros (1917-1992) foi presidente do Brasil por 7 meses em 1961. Inopinadamente, renunciou ao cargo, como todos sabem. Dizem que sua intenção era ser trazido de volta nos braços do povo e tornar-se ditador. Não saberemos nunca. O que se sabe, porém, é que, anos após ter deixado a Presidência, Quadros foi eleito prefeito de São Paulo. Diz o bom senso que, uma vez chegado ao ponto alto da carreira, o homem político não deveria buscar um posto de menor importância. Não cai bem. Os brios começavam a periclitar.

Depois disso, tivemos ainda um Collor presidente que, destituído, voltou como senador. Uma Dilma presidente que, igualmente destituída, tentou voltar como senadora, sem sucesso. Lava a Jato e outros processos retumbantes mostraram que, em dezenas de acusados, quase nenhum admitiu os “malfeitos”. A mentira descarada vai-se firmando como esconderijo óbvio de homens e mulheres sem brios.

Antiga prefeita que agora se candidata à vice, e foragidos da Justiça que se candidatam a prefeito são outras facetas do mesmo fenômeno. Estivéssemos em outros tempos, todos os elencados destes últimos parágrafos seriam rotulados como pessoas às quais falta vergonha na cara, qualidade em desuso.

Faz poucos dias, uma notícia calamitosa sacudiu os brasileiros decentes. Um descaso inominável permitiu que órgãos contaminados por HIV fossem enviados para transplante, o que ocasionou criminosa e imediata transmissão da doença aos frágeis pacientes transplantados. Os infelizes buscavam a salvação, mas encontraram a condenação. Um horror indescritível. Apesar da repercussão, os diretores da Fundação Saúde, órgão responsável pelo controle e supervisão dos transplantes, fizeram cara de paisagem e continuaram pendurados no cabide, impérvios, sem mostrar vergonha. Foi preciso o governador do Rio tomar a iniciativa e exonerar a turma toda.

A falta de brios tem-se alastrado para fora do picadeiro político. Outro dia, uma aluna de conhecida faculdade paulista foi expulsa do estabelecimento por ter insultado uma colega chamando-a de macaca. Inconformada com a expulsão, a agressora recorreu à Justiça e obteve decisão liminar em seu favor, permitindo-lhe reintegrar os cursos. Fosse em outros tempos, ela não só não voltaria às aulas, como também nunca mais passaria diante da escola. De vergonha.

Logo logo, os brios desaparecerão da linguagem comum e se restringirão ao jargão da pecuária: “Eia, Briosa!”.

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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