A mulher mais amada. Por Antonio Contente
A mulher mais amada que nunca foi tocada acaba por virar personagem de uma variação de paixão que, com o tempo, se torna acariciante. As histórias d’amores impossíveis, e esse é um dos mistérios do belo, estão sempre em começo, estão sempre em meio; porém, nunca, no fim…
Não são todos, claro, porém é razoável o número de homens que, mesmo sem com elas terem ficado, ou sequer lhes dado um reles, um exíguo, um casto beijo, guarde, no coração e n’alma, a certeza de que certa moça foi a mulher que mais amou na vida. Sim, é natural que, obviamente, também amaram outras; todavia, como aquela que teve sua gênese nas impossibilidades, jamais.
Em termos de amor, nem sempre o inacessível é dolorido na versão considerada mais letal. O que faz com que o opaco do nunca passe a vagar numa dimensão na qual alguma cor de ouro apareça, ao se ampliar, como sentimento, no rumo da eternidade. Sofrimentos burilados podem burilar amores por damas inalcançáveis.
A mulher mais amada que nunca foi tocada acaba por virar personagem de uma variação de paixão que, com o tempo, se torna acariciante. As histórias d’amores impossíveis, e esse é um dos mistérios do belo, estão sempre em começo, estão sempre em meio; porém, nunca, no fim.
A moça tão à mão quanto o pico do Himalaia é a melhor companheira para as tardes de silêncios. Ela, como já está perenemente, nem chega; apenas transita para o instante, coroando-o com a luz da face, a sonoridade do riso, a ampliação dos muitos caminhos aos quais a beleza conduz. Há inúmeras sensações boas para curtir, com ela; em algumas horas de chuva, por exemplo, taças de vinho, Sonatas para Piano de Mozart, ou ambos. Pronto, ai é que é bom chegar a lembrança daquela criatura que mais se amou na vida. Faz companhia como se pudesse ser tocada, fala como se pudesse ser ouvida, respira como se real fosse o arfar de seu peito imponderabilíssimo.
A mulher que se amou platonicamente, como nenhuma outra, fica mais nitidamente bela, mais ampla e agradável como companhia a cada dia que passa, como se estivesse sendo aperfeiçoada pelo tempo; e, por sua fascinante real irrealidade, é simplesmente maravilhoso que a perfeição nunca seja abalada. Pois se, de um lado, no real o aprimoramento faz parte do fascínio, de outro abre portas para certas falhas que tocam. Amores palpáveis sempre correm riscos de alguns precipícios. Pois tem cores para os olhos, e realidade de toques para as mãos. O infinito é impalpavelmente infinito; apenas no finito as tintas esmaecem.
A mulher que mais se amou sem nunca nossa ter sido, acaba, na escrita, por ser exatamente aquela que, paradoxalmente, mais se tem. É que, em verdade, ao contrário das outras, ela está em tudo. Cálida, digamos, nos instantes em que a brisa faz balançar os galhos das sibipirunas, torna isso um aceno às recordações. Está ela, também, nos acordes, mesmo longínquos, de certas músicas. Está no lento fluir de algum perfume, ou no horizonte que se abra aos nossos olhos em mares próximos ou nos nunca dantes navegados. Que, inevitavelmente, levam para além, muito além da Trapobana. Que pode ser o lugar onde o amor germina, se ceva e se salva. O grande amor exercido com imaginação não é o que procura lugares; sim o que os cria.
Mas tudo isso está sendo dito, amigos, porque de repente, na minha última ida a São Paulo, faz apenas alguns dias, ao transitar pela rua Barão de Itapetininga, no centro, de repente avisto, encostado a um poste, a solene figura do esplêndido Turílio, bom amigo dos velhos tempos em que eu trabalhava nos jornais da cidade. Ele era gerente de banco, não foram poucas as vezes em que me livrou a cara em momentos de aperto. Ao vê-lo, abro os braços:
— Você aqui, irmão? Encostado aí para que? Pra não cair o poste ou você?
Antes mesmo de dar “bom dia”, ele crava a vista nos meus óculos para dizer, com a voz quase sumida:
— Acabo de ver, com estes olhos que a terra há de comer, a mulher que eu mais amei na vida.
Tomo susto com a revelação e solto um “viu assim, de repente”?
— Aqui mesmo – ele responde – pude até sentir aroma do “Opium”, o maravilhoso perfume de Yves Saint Laurent que ela usava naqueles tempos do banco, onde éramos colegas.
— E vocês…
— Não, nada. Ela estava loucamente apaixonada por outro e casou com ele. Mas foi a mulher que mais amei na vida.
Diante da revelação, e como ele me dissera que acabara de vê-la, indago:
— Foi bom revê-la? Foi, pelo menos agora, um gratificante reencontro?
“Que nada”, ele suspira. Daí detalha que ia andando pela citada Barão quando avista a moça que vinha em sentindo contrário, a segurar a mão de uma linda menina de uns seis ou sete anos, provável neta.
— Sim – insisto – e o reencontro foi bom, foi legal?
— Ah, meu, simplesmente não houve. Pois não nos víamos desde a época em que trabalhamos juntos, no banco, faz mais de cinquenta anos.
— Bom – tento argumentar – mas esse fato não impediria um instante prazeroso…
— Absolutamente – sua voz enfraquece ainda mais – ela tão somente resvalou sobre mim um simples olhar de segundos, o mesmo que resvalaria sobre um cão sarnento que estivesse na sarjeta; e seguiu em frente. Não me reconheceu.
— E você…
— Eu apenas fiquei quieto. Vendo-a sumir na direção da praça da República. Ali, descobri.
— O que?
— Que a mais amada era uma outra; incólume aos efeitos dos tempos e dos ventos…
__________________________________________________________
ANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.
___________________________________________________________________