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A gatinha. Por Antonio Contente

Chamada apenas de “Gatinha”, ao longo de nada menos 16 anos rodou pela casa deles a espalhar pequenas doses de encantos…

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André e Raquel tinham uma siamesa. Chamada apenas de “Gatinha”, ao longo de nada menos 16 anos rodou pela casa deles a espalhar pequenas doses de encantos. Para falar a verdade não acompanhei sua trajetória desde o nascimento. Quando a conheci já era adulta, mas, em visitas constantes ao lugar em que morava, pude ir sendo tomado pelos bons astrais que o animalzinho irradiava. Era bege escuro, pelo liso, olhar francamente vivaz. De vez em quando eu a via passar pelo espaço da garagem em velocidade espantosa. Carreira que sempre seguia até subida num muro quase alto para, por ele, alcançar o telhado. O que fazia lá por cima eu nunca soube, acho que seus donos também. Talvez engatasse namoros; ou se postasse, apenas, a tomar sol nos dias mais frescos.

Por falar em namoro, a gatinha teve filhos. Dos que ficaram na casa pelo menos uma lhe fez companhia por muitos anos, porém morreu antes dela. Quanto ao seu temperamento diferenciado, saquei isso certa vez em que tendo uma rolinha-carijó a ciscar no quintal diante dela, limitou-se a olhá-la; isso quando seus companheiros de espécie em geral saltavam em cima. Era generosa, gostava de passarinhos.

Comigo, a gatinha interagiu tão logo nos conhecemos. Como não ocorreu nenhuma apresentação formal, tive certeza que havia identificações entre nós quando ela passou a roçar nas minhas pernas assim que eu aparecia para visitas. Depois, bastava que eu sentasse para um cafezinho vinha se aboletar no meu colo. Foi quando tanto Raquel quanto André garantiram ser bom sinal que a siamesinha gostasse de mim.

Um dos episódios mais narráveis da nossa amizade aconteceu durante uma Copa do Mundo. Justamente aquela do inesquecível 7 a 1 contra a Alemanha, pois fui assistir a partida junto com André. E bastou o juiz apitar o começo do match para que a gatinha viesse se posicionar no meu colo. O que me permitiu observar sua fantástica reação: a cada gol contra o Brasil, ela se agitava. Certamente não estava a torcer pelos tedescos. Era ânsia mesmo por ver a tremenda surra que os Canarinhos tomavam. Terminado o jogo ela escorregou pro chão e, com a porta aberta, partiu meio lentamente por causa da idade; indo se postar, triste, à sombra da goiabeira que dá mais vida ao jardim que margeia a garagem.

Dizem que cada ano que um gato vive é equivalente a seis dos seres humanos. A ser isso verdade, a gatinha estava com mais de noventa dos nossos quando seu organismo começou a ceder. As idas à veterinária se acentuaram e, certa vez, quando fui à simpática casa da Chácara da Barra e não vi a gatinha, fiquei sabendo que estava na clínica, tomando soro. Comecei a me preocupar com ela.

Pois bem, para encurtar a história, num dia qualquer nossa linda siamesa amanheceu prostrada. Pela experiência de Raquel com ela e pela muita idade do animalzinho, a opção foi poupá-la do veterinário que em eventos semelhantes aconselha a prática da eutanásia. O ideal era deixá-la morrer naturalmente.

Armaram então almofadas num cantinho da sala onde a enferma foi depositada. De vez em quando levantava a cabecinha, serenamente, segundo me contaram. Até que, passava um pouco dum meio-dia, quando André colocou a mão sobre o peito da amiga de tantos anos.

         — Aconteceu, mãe – ele falou para Raquel – o coração parou.

         No fim da tarde, o sol já a descer para os lados do Taquaral, foi cavado, no quintal, um buraco sob os galhos de lindo arbusto de copa arredondada cujas folhas batem no chão. Cheguei exatamente na honra em que a gatinha, envolta num recorte de linho branco, era sepultada. E lamentei que as belas pétalas alvíssimas que o vegetal sempre ostentava lá não estivessem por causa da seca.

         No dia seguinte, porém, logo cedo André me liga e comenta:

         — Puxa, pai, você nem vai acreditar: mas a árvore sob a qual colocamos nossa amiguinha amanheceu coberta de flores.

         Como na madrugada ocorrera breve chuvisco, a ele creditamos o desabrochar dos botões. Mas tive a impressão que a gatinha já estava a pedir para São Pedro mais águas, para fazer transbordar as represas da vida. Devia querer muito mais florescências sobre o quieto leito onde, para a tristeza dos que com ela conviveram, segue a dormir para sempre.

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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