aparição

Aparição. Por Antonio Contente

               Aparição…  Anda, com os cabelos castanhos claros iluminando o tempo. Pôr instantes, senti que deles vinha suave perfume; e um perfume só é realmente bom quando temos a impressão que emerge de nossas melhores recordações de passado remoto. Chanel. Número Cinco… APARIÇÃO

         Dez horas da manhã, luminosa manhã, na calçada em frente ao bar Giovanetti, no Largo do Rosário, Campinas. De repente, não se sabe vinda de onde, a aparição. Vinte anos, no máximo. Sobre o corpo, leve,  diáfano vestido de seda azul feito para a carícia do corpo ante as sutilezas da brisa matinal. Alta, bem alta para mulher, 1,75, talvez 1,78. E ela, além de tudo, se move com graça.

         Anda, com os cabelos castanhos claros iluminando o tempo. Pôr instantes, senti que deles vinha suave perfume; e um perfume só é realmente bom quando temos a impressão que emerge de nossas melhores recordações de passado remoto. Chanel. Número Cinco…

         Agora não eram apenas meus olhos, parcos olhos, que a viam. Movimentava as pernas esguias, galgas, com elegância de bailarina necessariamente russa. Isso para ressaltar o contorno calipígio nas ancas bifurcado; após, a barriguinha doce; e seios maliciosamente verticais, peras quase fartas. Setas para o céu, caminhos para o infinito, certezas para o azul, simplificação para todas as linhas que os artistas buscam em vigílias e lamentos. Grito desdobrado, subitamente, em canção.

         Vai ela, no rumo da avenida Francisco Glicério. Perseguida pelos ventos que disputavam a carícia dos seus contornos, e já meia dúzia de pessoas, que, como eu, passaram da hipnose à condição de autômatos.

         Abre o sinal e ela passa, em direção à praça Guilherme de Almeida. Esquadrilha de pombos, talvez saída dos escaninhos dos antigos prédios da rua Barão de Jaguara, a acompanha em formação de alvoroço e enleio. Fecha o sinal da Conceição, a moça pára ante o devoto silêncio da já pequena multidão. Vemos que seus ombros são tostados, um bronzeado de pintura de antigas cintilações de madonas. Perfeitos no contorno da severa precisão, com charme de duas pintas num deles, talvez a assinatura de algum deus que também deu seu toque na clave de sol da singularíssima pessoa.

         Vamos todos, ela à frente, para a calçada que passa em frente ao banco Itaú. Os passos da aparição não se alteram, fazendo sulcos dourados num prosaico cimento que, de repente, vira Calçada da Fama. Dos olhos da criatura passo a ter apenas uma desejada certeza. Azuis. Irremediavelmente azuis, como o gesto do encanto e a canção primeva. Azul como o primeiro suspiro de Deus após ter feito a mulher, certo de que chegara à sua obra máxima. E ela estava ali, no passeio, entrando na praça em frente à Catedral. Víamos a Eva que fora depositada sobre o Paraíso.

         Não minto, do velho templo esvoaçaram anjos. Não eram mais os pombos da Barão de Jaguara, sim anjos, dos altares e dos púlpitos saídos, em formação de auréola e respeito à beleza. Luz à luz, louro sol sobre trigal em festa.

         Os cabelos bons são aqueles que se ajeitam ao desalinho. Vento dos arcanjos, sopro dos santos, os fios beijavam a testa da aparição acariciando não só à ela, porém, à manhã inteira. Diria que os que agora acompanhavam a criatura eram centenas. Não um exército de famintos, sim de alimentados. Caíra sobre nós o manjar dos céus, se abrira o mar ante o gesto de Moisés pasmo pela beleza e pelo seu melhor fruto, antecipação de um decálogo das perfeições mais que perfeitas. E em todos nós se consubstanciava um silêncio posto na sua versão de absoluto. Em tal instante, no centro mais movimentado da cidade, nenhuma buzina, nenhum motor roncando, nenhum alarido de vozes ou contidos suplícios. Só os passos dela, da aparição, ecoando na calçada. Sandália dourada, duas ou três tiras contendo os pés de Cinderela às vésperas do casamento com o príncipe. E então nós, os hipnotizados, éramos milhares.

         Raio absurdo do céu, catástrofe apocalíptica mandada do infinito, de repente um dragão a absorveu. Revelado na sisudez de um velho prédio quase na esquina da rua Ferreira Penteado, a boca transformada em porta a levou. O suspiro da multidão se ergueu com pasmo e desesperança. Campinas, dez e meia da manhã. Uma manhã que, afinal, até hoje não consigo saber se realmente aconteceu. Apesar do perfume que ficou para sempre, no ar… No ar… Em mim… Eternamente, em mim…

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Antonio ContenteANTÔNIO CONTENTE – Jornalista, cronista, escritor, várias obras publicadas. Entre elas, O Lobisomem Cantador, Um Doido no Quarteirão. Natural de Belém do Pará, vive em Campinas, SP, onde colabora com o Correio Popular, entre outros veículos.

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