2002- Serra x Lula

Folha de S. Paulo, 11 out /2024

2002: Serra x Lula… Passaram-se mais de duas décadas. Tratado a bofetadas, exposto aos caprichos do governante de turno, o Mercosul deu passos de bolero: dois pra lá, dois pra cá, dois pra frente, dois pra trás…

2002- Serra x Lula
Folha de S. Paulo, 11 out /2024

Estávamos lá por setembro de 2002 e o Brasil estava fervendo na reta final da campanha presidencial. Tirando os candidatos folclóricos, os dois que contavam mesmo eram Lula da Silva e José Serra. Naquele tempo, acho que residentes no exterior não o tinham direito de votar. Se tinham, eu é que não sabia. Assim sendo, não me apresentei e, naturalmente, não votei.

Mas isso não me impedia de ter minhas simpatias e preferências. Meu candidato natural era Serra. Do PT, sempre desconfiei. Imaginei que acabassem instalando uma república sindical, em moldes assemelhados aos do fascismo italiano.

Na época, não havia internet como a conhecemos hoje. Redes sociais não funcionavam como hoje. Assistir à tevê por internet era uma aventura, com recepção pixelizada, tremida, entrecortada. Notícia mesmo vinha por jornal online.

Um dia, fiquei sabendo que José Serra era de opinião que o Mercosul não servia para nada e que melhor seria acabar com ele. Enquanto isso, o candidato Lula se mostrava todo favorável, considerando que era um bloco útil e importante.

Sempre fui de opinião que nós, a humanidade inteira, vivemos num mesmo planeta. Não havendo planeta bis, estamos condenados a viver todos em cima desta bola que gira sem parar. Desse modo, é melhor tratar de nos entender, que não há outro jeito. Não há para onde fugir nem escapar. Melhor conversar e resolver disputas sem sacar a arma. Instituições como a União Europeia e o Mercosul promovem uma abertura na boa direção.

Quando vi a posição de Serra e de Lula, mudei de posição. Olhei para aquele barbudinho de língua presa, a vista não me agradou. O homem falava demais, com ar de quem estava sempre enervado, chutando pé de mesa. Mas sua visão do Mercosul me pareceu mais judiciosa do que a do adversário. Disse para mim mesmo: “É com esse que eu vou”.

“É com esse que eu vou” é modo de dizer, que eu não podia (ou achava que não podia) votar daqui do exterior. Mas torci e, acho que pela primeira vez, “ganhei” uma eleição.

Passaram-se mais de duas décadas. Tratado a bofetadas, exposto aos caprichos do governante de turno, o Mercosul deu passos de bolero: dois pra lá, dois pra cá, dois pra frente, dois pra trás. Sem nunca alcançar o status de instrumento de Estado, a pobre organização continua sob a bota do governante de turno. Cada um considera o bloco um instrumento à disposição de seus caprichos. Os interesses permanentes dos Estados passam ao largo.

Hoje, ao ler a chamada de jornal que encabeça este escrito, entendo que José Serra tinha razão. Ele, que entende do riscado, já tinha se dado conta de que o Mercosul mais tem atrapalhado do que ajudado, e que teria sido melhor se nunca tivesse sido inventado.

Um Lula à época inexperiente talvez não tivesse percebido essa realidade. Ou quem sabe tinha entendido, mas já se preparava para encampar a instituição e usá-la para a promoção de interesses seus e de seu entourage.

Está aí uma pergunta cuja resposta talvez não venhamos a conhecer nunca.

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JOSÉ HORTA MANZANO – Escritor, analista e cronista. Mantém o blog Brasil de Longe. Analisa as coisas de nosso país em diversos ângulos,  dependendo da inspiração do momento; pode tratar de política, línguas, história, música, geografia, atualidade e notícias do dia a dia. Colabora no caderno Opinião, do Correio Braziliense. Vive na Suíça, e há 45 anos mora no continente europeu. A comparação entre os fatos de lá e os daqui é uma de suas especialidades.

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