Perdas e ganhos numa eleição pós-moderna. Por Fernando Gabeira
By Chumbo Gordo 2 meses agoHouve um consenso de que a direita foi vitoriosa nas eleições municipais. Pouco se falou, entretanto, de que não há nenhuma surpresa nisso. É parecido com reconhecer que a direita domina o Congresso. E concluir que existe uma relação estreita entre essas duas variáveis.
Não só o orçamento secreto, como também suas sucessoras, as emendas Pix, tiveram um papel importante na reeleição dos prefeitos. E certamente, como pagamento, terão influência na recondução dos deputados em 2026. É uma engrenagem que funciona com precisão, e conhecê-la nos livra pelo menos do susto.
O processo ainda não está concluído. Cinquenta e duas cidades, entre elas 15 capitais, terão segundo turno. Mas o volume de votos do primeiro turno mostra que o PL, por exemplo, colheu 14% dos votos computados contra 7,9% do PT. Fora desses dois grandes partidos, importantes federações podem surgir: MDB+PSD=14.643 vereadores e 1.725 prefeitos; PP+União Brasil+Republicanos=16.969 vereadores e 1.751 prefeitos.
A força da direita, entretanto, não pode ser explicada apenas através do jogo orçamentário. Uma variável pouco discutida é o nível de abstenção. Apenas em São Paulo, 2,5 milhões de eleitores deixaram de votar, um número superior à votação de Ricardo Nunes e também à de Guilherme Boulos. Os índices em Porto Alegre chegam a 31,5%.
Há um desencanto com a política. Isso é uma censura à qualidade da vida pública, mas também uma recusa em investir em soluções coletivas.
Como tenho acentuado em alguns artigos, existe uma ideia de que a pessoa depende apenas de seu trabalho e que todos almejam a prosperidade individual, inclusive os políticos que mascaram esse desejo sob o manto de um discurso sobre o bem coletivo.
A força de uma direita mais estridente tem sido atribuída tanto na Europa como nos EUA ao avanço da migração de milhões de pessoas tangidas pelo processo de globalização, guerras e desastres naturais.
No entanto, a origem brasileira dessa corrente não pode ser atribuída à mesma causa, mas aos escândalos de corrupção que abalaram o País e também à diversidade cultural, cada vez mais complexa e ameaçadora. Um candidato de direita pode obter milhares de votos prometendo proibir mulheres trans nos banheiros femininos, mesmo que isso seja um fator numericamente insignificante. Mas interpreta o medo da convivência com estilos de vida estranhos ao convencional.
Não apenas a aparição de uma direita mais radical precisa ser interpretada, mas também as mudanças na visão de mundo que se acentuam com o chamado pós-modernismo. Faz algum tempo que o próprio conceito de verdade foi abandonado. Alguns datam da ida de Colin Powell à ONU, quando mentiu com fotos sobre a existência de armas nucleares no Irã.
Na própria eleição de Donald Trump, a tendência estava definida. Ele supercalculou o número de presentes em sua posse e, questionado, defendeu uma realidade alternativa.
Esse processo acabou se apresentando de forma dramática no Brasil, com a histórias sobre mamadeiras eróticas em 2018 e, finalmente, com o laudo grosseiramente falsificado por Pablo Marçal.
Essas atitudes servem para afastar mais pessoas da política, como se estivessem diante de uma área irremediavelmente contaminada.
No entanto, não se pode simplesmente atribuir a uma corrente cultural, o pós-modernismo e seu questionamento da verdade, esse processo disruptivo.
Muito antes disso, houve, na formulação de Maquiavel: os fins justificam os meios.
Até certo ponto, a direita radical mimetiza alguns comportamentos que existiram na esquerda, mas foram se tornando mais audaciosos com o tempo.
Ainda no período de redemocratização, o processo eleitoral, anterior à hegemonia das redes sociais, era marcado pela divulgação de dossiês contra candidatos. Naquele período, surgiram os precursores de Pablo Marçal: os aloprados.
As diferenças, no entanto, são enormes. Os dossiês eram publicados em revista com circulação limitada. Nas redes sociais, as mentiras circulam entre milhões no espaço de horas. Verdade é que também são desmentidas com rapidez, e os autores das notícias falsas acabam pagando o preço.
Foi assim com Pablo Marçal e foi assim também no primeiro grande caso do gênero, numa eleição espanhola na qual se atribuiu falsamente um atentado a defensores da autonomia basca. Através de celulares foi convocada uma grande manifestação, que repercutiu no resultado eleitoral.
Um dos muitos nós que amarram o crescimento de forças democráticas ou mesmo de esquerda está na rigidez com que veem a questão de prosperidade individual versus soluções coletivas.
A prosperidade individual, a capacidade de empreender num mundo de raros empregos, não deveria ser estigmatizada como ilusão do sistema.
Documentei uma experiência no Vale do Jequitinhonha, em Minas, envolvendo 2 mil mulheres. Foram financiadas para empreender e mantinham contato permanente entre si, trocando experiências e se ajudando. Pelo menos para mim ficou evidente ali que era possível empreender e se interessar pela sorte coletiva.
Este é o outro lado do crescimento da direita: o erro dos adversários.
Fernando Gabeira*– é escritor, jornalista e ex-deputado federal pelo Rio de Janeiro. Atualmente na GloboNews, como comentarista. Foi candidato ao Governo do Rio de Janeiro. Articulista para, entre outros veículos, O Estado de S. Paulo e O Globo, onde escreve às segundas. Programas especiais – reportagens – para a GloboNews. Semanalmente, o podcast Fala, Gabeira! – no YouTube – https://www.youtube.com/@falagabeira298